quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

 A NEVES DA ROCHA

 

Na postagem inicial desta série, onde fiz o “resumo resumido” da minha história, passei depressa por uma das fases mais interessantes, divertidas e inesperadas. Refiro-me ao trecho que começa com a construção da casa no Itanhangá, e da escada caracol adquirida por leilão no Joquei Clube do Rio (está na postagem "O LIVING ROOM"). Agora cumpro o prometido lá: relatar um dos tantos episódios vivenciados naquele percurso.

A rua era a Engenheiro Neves da Rocha e não sei se seu traçado, que se iniciava reto e firme, esboçava uma praça a sua esquerda, e depois uma quadra, voltando bruscamente sobre si mesma a fechar um desenho urbano pouco comum, tinha algum poder sobre as pessoas. Ou se era a cachoeira que, lá bem atrás do loteamento, ao oferecer obstinadamente o som suave da música de suas águas, era quem desempenhava o papel de produzir fortes e ricas amizades naquele nosso microuniverso

Isso para dizer que Jorjão e Teca do lado da cachoeira, Marisão e Tio Heitor do lado da rua que voltava, faziam com que nós, eu e Sonia, paulistas pouco habituados aos costumes cariocas, sentíssemo-nos totalmente em casa, mesmo estando em nossa casa.

Lembro-me de que o primeiro encontro real desses seis personagens foi proposto por este paulixxta que lhes fala, sugerindo (por óbvio) uma pizza em algum lugar da Barra da Tijuca. Não, não vou falar das pizzas cariocas com ketchup, não neste momento. Falo da hora da conta, que este esdrúxulo paulista se propõe pagar, esperando aquelas gentis manifestações dos demais cavalheiros à mesa.

Nunca, mas nunca me senti tão idiota ao constatar, incrédulo, uma total reversão de expectativa. Nunca, mas nunca mais saímos para uma pizza porque, já que é assim, pizzas e quaisquer outros eventos gastronômicos terão de acontecer aqui, na minha casa. E tenho dito!
Tem coisas que não mudam nunca...

Minto, teve uma coisa que mudou.

Era um dia festivo, não me lembro de que festa, mas Marisão, toda de branco com seus lindos e loiros cabelos me falava de um concurso de rádio do qual participara (e depois soube que levara o primeiro prêmio). Era um programa chamado A Grande Chance, de um tal de Flavio Cavalcante.
Minhas orelhas se levantaram como aquelas de um bem treinado cão de caça, arriscando:
- Claro, quem não se lembraria daquele personagem!
E passados alguns segundos de silêncio insisti:
- Então posso considerar que você canta.
- Cantava, respondeu sem me olhar.
Achei estranha a forma como disse, então ousei mais um passo:
- Mas quem cantou, ainda canta.
- Eu não. Parei de cantar há algum tempo, não tenho mais ânimo para isso, nem sei se ainda sei cantar!

Ah, não tive mais dúvidas de que eu estava no caminho certo. Só não continuei nessa linha de conversa porque já sabia que qualquer coisa que dissesse seria de pronto contestada. Aquele livro do Eric Berne já tinha me ensinado muitas coisas importantes sobre os mistérios da comunicação humana (leia "OS JOGOS DA VIDA" aqui neste blog).

Sentei-me ao piano que estava bem ali do nosso lado e comecei a brincar com algumas melodias sondando disfarçadamente a expressão facial de Marisão. Em alguns momentos ela sussurrou uma letra conhecida e eu, fingindo não prestar muita atenção, experimentei alguns acordes sugerindo a melodia a seguir. Esse processo durou não sei quantos segundos, minutos ou horas. Naquele astral não havia nenhum tempo real a ser medido. Então podemos agora pular algumas semanas, talvez meses. 

O que se vai ver naquele living-room, não é só a escada caracol, mas um desajeitado contrabaixo num dos cantos, uma velha bateria do outro e lá naquela poltroninha perto da janela (não, de lá não se via o corcovado, o redentor, que pena Vinícius...), mas lá estava o violão.
 
Só posso dizer que Marisão recuperou o que que nunca tinha perdido, a voz mais afinada, o timbre mais delicioso e o ritmo mais contagiante. Ela cantava de tudo, de bossa nova a cançonetas napolitanas, de rock a valsinhas das vovós, de jazz a partido alto. Eu fazia o melhor que podia, mas ainda bem longe do que gostaria e muito mais longe do que o talento dela merecia.

Naquela época ainda não sabia nada sobre cifras, só contava com meu ouvido, que já tinha sido absoluto na minha adolescência, mas já era relativo, o que nem sempre me permitia transitar pelas tonalidades mais apropriadas à bela voz de minha cantora.

Não sei do que tanto conversavam Tio Heitor e Tia Sonia, mas eles não paravam de falar e era possível observar deles lances ocasionais de olhares orgulhosos ao observar suas caras-metades se divertirem tanto com aqueles números de Piano-Voz.

A presença de Jorjão e Teca tornava os encontros ainda melhores, eles curtiam tanto que não se contentavam em ouvir, mas participavam como podiam dos saraus que aconteceram durante todo o tempo em que moramos na inesquecível Neves da Rocha.

NOTA:

Marisa Rossi
Começou em Belo Horizonte nos anos 60, junto com os participantes do programa Brasa 4 da TV Itacolomi. Mudou-se para o Rio de Janeiro onde se graduou em Jornalismo e participou de diversas atividades artísticas na TV Tupi com destaque para a conquista do primeiro prêmio em “A Grande Chance” sob condução de Flávio Cavalcante em 1966. 
São doze faixas sendo que a última é a música é “Libera” (Free Again), com a qual venceu o concurso acima citado. Ouçam-na clicando em:
https://youtu.be/LbLyhgUm0bE