COISA DE ÍNDIO
Naquela segunda-feira, dia quatro de setembro de 1989, saí muito cedo de casa e enfrentei a Via Dutra até São Jose dos Campos, onde me juntaria a um grupo de engenheiros e técnicos do setor de Sensoriamento Remoto do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), então meu cliente.
De fato, lá iniciamos uma viagem em ônibus do próprio CTA (Centro Técnico da Aeronáutica) para um hotel fazenda onde realizaríamos um seminário sobre Desenvolvimento de Líderes, com palestras, filmes, música e artes plásticas, para cuja realização convidei alguns parceiros.
A viagem durou quase toda a manhã e o assunto não foi outro senão o jogo Brasil X Chile do domingo, cujo resultado nos deu condição para disputar a Copa do Mundo de 1990. Foi um jogo tumultuado no qual o Brasil ganhava de um a zero quando uma torcedora atirou um sinalizador em direção a Rojas, goleiro do Chile, o qual simulou ter se contundido (muitos de nós se lembram disso...). O time do Chile, já punido por aquela simulação, acabou se retirando do jogo aos vinte e oito do segundo tempo. Com isso a FIFA deu o placar de dois a zero para o Brasil, mas quem ganhou aquela copa, na Itália, foi a Alemanha.
Durante a viagem ficou clara a preocupação de um dos engenheiros do grupo que recebia diversas ligações radiotelefônicas, às vezes até parando o ônibus e saindo dele para obter melhor sinal. Vivíamos uma época anterior à da telefonia móvel, só implementada no Brasil alguns anos depois. Em consequência da comunicação precária, só pudemos compreender a extrema seriedade do problema ao chegarmos a nosso destino.
Quem não chegou a seu destino foi o voo Varig RG-254, com quarenta e oito passageiros e seis tripulantes a bordo, tendo no dia anterior decolado do aeroporto de Marabá, ou seja, no domingo, três de setembro, às 17:35h, com previsão de pousar em Belém do Pará ainda antes do pôr do sol.
Falar em posição do sol na aviação comercial não era proibido ainda, como parece ser nos dias de hoje, dada a sofisticação tecnológica da instrumentação aeronáutica. Mas parece que o comandante Cézar Augusto Padula Garcez não se entendia bem com as posições do astro rei, ou as considerava coisa de índio. Ah, houvesse um índio naquela tripulação e quantas vidas se salvariam!
A questão que preocupava não só nosso engenheiro, mas a Varig, o SALVAERO (entidade de busca e salvamento da aeronáutica) e todos os que acompanhavam o mistério daquele voo era: onde estará o Boeing 737-200, matrícula PP-VMK?
Nosso diligente e preocupado engenheiro, já tinha essa resposta lá pelas nove da manhã, com a localização precisa do avião (ou de seus destroços) e de seus viajantes (ou de seus corpos). Só que o mundo “lógico” se recusava a acreditar, pois o RG-254 e estaria “com certeza” na faixa Marabá – Belém, afinal muitos testemunharam sua última decolagem. Mas o local do acidente segundo transmissões do satélite era perto do Parque do Xingu, cerca de 1.200 km do destino planejado do voo. Impossível!
Um outro engenheiro que assumira o controle da estação receptora de satélites em Cachoeira Paulista já havia informado, por repetidas vezes, a localização do Boeing que, destroçado ou não, ainda emitia um sinal automático acusando sua localização.
Mas a SALVAERO, a Varig, e para piorar, as Tvs e Rádios que entraram no circuito (e que tinham tudo “em primeira mão” e de “fontes confiáveis”) propalavam notícias de estrondos e clarões observados nas proximidades da rota planejada daquele Boeing. Parece que ninguém levava a sério os dados de satélites, até porque o sistema de Cachoeira Paulista havia sido instalado recentemente e era melhor “não dar muito crédito a essas novas tecnologias”, afinal o avião, “definitivamente não poderia estar lá”.
(Digam se isso não se parece um pouco com a atual polêmica sobre as vacinas para o Covid-19, uma discussão sobre detalhes técnicos de áreas das quais seus atores, políticos ou não, jamais tiveram o menor conhecimento).
Existe uma forte razão primária para explicar o desaparecimento daquela aeronave que é a seguinte: enquanto o copiloto fazia a inspeção externa no Boeing pousado em Marabá, o comandante Garcez ajustava a nova rota para Belém que era 0270, com esses quatro dígitos que, conforme as novas normas da companhia, significaria um ângulo de 027 (vinte e sete graus) em relação ao Norte. Assim Garcez girou o dial do HSI (indicador de posição horizontal), que apresentava números com três dígitos, até que o ponteiro em forma de aviãozinho chegasse ao número 270 (duzentos e setenta graus). E tudo pareceu bem para o apressado comandante, afinal o primeiro tempo do jogo terminaria em poucos minutos.
Mas podemos encontrar uma razão secundária: se foi a pressa ou porque sabia que seu superior não gostava muito de perguntas, o copiloto Nilson de Souza Zille, ao invés de recitar o checklist, achou melhor olhar para o HSI do comandante e ajustar o seu da mesma forma.
Em aeronáutica sabe-se que acidentes nunca decorrem de uma única causa. De início a Varig tentou restringir o problema à falha dos dois pilotos. Mas investigações posteriores levantaram diversas outras possíveis causas, como a elaboração de um mapa que induzia o leitor a erro e a desatenção do Controle de Voo de Marabá que não observou a proa do avião em direção totalmente diferente da prevista. O próprio comandante, além do erro crasso já cometido, errou mais ainda ao não informar os pilotos de outras aeronaves, com os quais teve contato por rádio durante o voo, do fato de que ele estava completamente perdido na selva.
É preciso destacar ainda a falha do SALVAERO que, se desse crédito às informações de satélite, obviamente não poderia evitar o acidente, mas certamente teria evitado a morte de pelo menos uma passageira que não resistiu ao tempo de espera do socorro.
E quais foram os verdadeiros heróis da tragédia? Bem, quatro homens, depois de 36 horas quase sem dormir, um com ferimento na cabeça outro na perna e dificuldade para andar, decidiram enfrentar a selva, afinal com um pouco de sorte, uma fazendinha ou um povoado talvez pudessem ser encontrados.
Assim, no clarear da terça-feira, Epaminondas, Afonso, Antonio Farias e Marcionílio saíram em uma busca desesperada, com uma caixa de sanduiches azedados, três isqueiros, um canivete, um colete salva-vidas e dois foguetes de sinalização.
Sob uma mata fechada de onde mal se podia ver o céu e depois de uma hora de caminhada, depararam, exultantes, adivinhem com que? Com bosta de vaca! Foi com esse alento que conseguiram fazer outras três horas e meia de caminhada para finalmente chegarem a um roçado e avistarem uma casa de fazenda. Esse momento marcou o triunfo da expedição e o salvamento de muitas vidas.
Porém foi difícil para aqueles quatro homens, num primeiro momento, acreditar que estavam na fazenda Crumaré do Xingu, município de Luciara, estado de Mato Grosso!
Muito, mas muito mais difícil do que isso, foi convencer, por rádio, as autoridades do SALVAERO, de que eles fossem, de fato, quatro dos sobreviventes do acidente do RG-254. E mais, que eles, um Boeing destruído, alguns corpos e diversos outros sobreviventes estavam realmente no Estado de Mato Grosso!
Muito, mas muito mais difícil do que isso, foi convencer, por rádio, as autoridades do SALVAERO, de que eles fossem, de fato, quatro dos sobreviventes do acidente do RG-254. E mais, que eles, um Boeing destruído, alguns corpos e diversos outros sobreviventes estavam realmente no Estado de Mato Grosso!