quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

A ASSERTIVIDADE


Era novembro de 2021, domingo, eu assistindo meu pobre time apanhar feio. No intervalo do jogo, mudo de canal ouço comentário sobre um tal sistema de algoritmos para pesquisas, desenvolvido para melhorar a “assertividade dos resultados”.

Tenho visto e ouvido com certa frequência esse uso terrivelmente impróprio da palavra “Assertividade” a qual, anos atrás, só frequentava as clínicas de psicoterapia e os livros de autoajuda, mas agora está na moda e povoa o linguajar dos jornalistas.

Como se sabe, “assertividade” nada tem a ver com a palavra “acerto”, nem mesmo se escreve com a letra “c”. Ela deriva do verbo em inglês “to assert”, também com dois “ss” e significa afirmar, asseverar e, até mesmo em certos contextos, pode significar “reclamar” ou “reivindicar”.

Tecnicamente ASSERTIVIDADE é a “habilidade social de fazer afirmação dos próprios direitos e expressar pensamentos, sentimentos e crenças de maneira direta, clara, honesta e apropriada ao contexto, de modo a não violar o direito e o respeito a outras pessoas. A postura assertiva é uma virtude, pois se mantém no justo meio-termo entre dois extremos inadequados, um por excesso (agressão), outro por falta (submissão). Ser assertivo é dizer "sim" e "não" quando cada umas dessas expressões forem necessárias”.

Essa uma boa definição que está na Dicio, o Dicionário Online de Português, para quem queira verificar, e não é muito diferente daquela que estudei, divulguei e ensinei em vinte anos de trabalhos na área da comunicação interpessoal.

Anos atrás, quando escrevia uma coluna semanal para um jornal, enviei um texto com o título “A ASSERTIVIDADE”. O editor do jornal gostou e mandou publicar recomendando “título em destaque”, e assim foi feito. Dias após, ao abrir o hebdomanário, deparei com meu texto com o destaque ganho em tipos graúdos e negrito: “A ACERTIVIDADE”, isso mesmo, escrito com um “C”.

É possível que para muitos isso tenha passado despercebido, ou tenha sido considerado sem importância, mas para quem estudou, divulgou e usou essa expressão tantas vezes em suas palestras, explicando o conceito, dando exemplos, fazendo exercícios e avaliações, não foi o que aconteceu. A visão daquele estúpido “C” produziu em meu cerebelo uma hecatombe de ódio, indignação e inconformismo.

E não havia mais o que fazer, o jornal já estava no café da manhã de todos os leitores da cidade, era aquela sensação de "não poder mais para apagar a mensagem depois de enviada!"  

Naquela situação não fui nada assertivo, pelo contrário, extrapolei todos os limites da minha assertividade. Passei a mão no telefone (expressão velha essa, hein?) e vociferei poucas e boas ao infeliz que atendeu minha ligação. Foi tudo o que pude fazer.

Alguns amigos tentaram me conformar, afinal foi só uma letra, diziam. Que fosse só uma vírgula, e vocês sabem que diferença pode fazer uma vírgula numa frase, que dizer de um hexassílabo em letras garrafais! 
Para mim foi como um Morumbi lotado que me vaiava contínua e ensurdecedoramente. E nesse tipo de jogo não interessa de quem foi a falta, ou mesmo se houve falta, o resultado foi um desastre pior do que se o Tricolor já tivesse caído para a série B, da qual já estava muito próximo depois daquele sofrido primeiro tempo.

E cá entre nós, sampaulinos, foi quase hein? 







segunda-feira, 12 de julho de 2021

 

- SAUDOSISMO? FALA SÉRIO... -



Confesso que textos que surgem em meus aplicativos de conversas, endeusando valores, métodos e hábitos do passado e, pior, demonizando mudanças, deixam minhas vísceras arrepiadas, levando-me, muitas vezes a atos de quase vandalismo contra a preciosa e inocente tecla Del. Mas desta vez o desejo de escrever de volta prevaleceu sobre a violência e eu acedi, evitando mais um ataque daqueles.

Falando de infância, quando bebê eu ainda usava uma maldita peça de roupa, um pedaço de pano chamado cueiro. Lembro que minha mãe se orgulhava ao exibir meu irmão mais novo como um “charutinho seguro e bem agasalhado”. Ela nunca soube que só quarenta anos mais tarde consegui me livrar do tal cueiro, graças a algumas sessões de psicoterapia.

Minhas idas e voltas à escola, ainda no primário, nunca foram divertidas, eu era empurrado dentro de ônibus ou bondes e na volta, geralmente meu pai me apanhava, quase sempre depois de longa e solitária espera.

O respeito aos mais velhos era cláusula pétrea, e para evitar as inimagináveis consequências de uma violação, era melhor ficar calado e sempre que possível fugir deles. A outra regra de mesmo peso era “não mentir”. Então acreditávamos em Papai Noel porque mais velhos garantiam sua existência, provas disso é que o velhinho comia as guloseimas deixadas na véspera em um pratinho, o qual, no amanhecer do dia seguinte, estava sujinho dos restos, dá pra acreditar?

Uma vez meu filho mais velho, ainda com seus seis anos, chegou bem perto e me perguntou quase em segredo:
- Pai, esse Papai Noel existe mesmo? Ao que respondi:
- Claro que não, mas não diga isso para os menores, vamos manter essa mentirinha.
Seus olhos brilharam demonstrando aquela deliciosa sensação de que “já sou grande” e até “cúmplice do papai”.  

A frase “péra aí mãe” não existia, a obediência era cega e surda. Na rua nem pensar, vizinhos sempre eram maus elementos. Lembro-me bem que expressão “moleque de rua” servia para evitar qualquer contato com desconhecidos - seriam todos marginais?

Bullying não existia?? Não com esse nome, porque eu era chamado de “4olho” até pelo professor de Educação Física, que jamais me escalava para os jogos. Poucos usavam óculos, mesmo os que tinham dificuldade para ler a lousa. Vejam hoje quantas crianças têm ótimos óculos e o usam até com o charme dos modelos mais modernos.

Almoço e jantar eram sim em família, mas só falavam os adultos, crianças não se metiam. Só quando eram perguntadas, quase sempre cobradas pelas notas de aritmética ou pelo comportamento num maldito boletim preparado sem o sagrado direito de defesa e do contraditório. O que? Questionar um professor? Nem pensar.

Mas eu me lembro que no terceiro ano primário uma professora estava explicando o movimento dos planetas no sistema solar, e isso eu achava o máximo, queria entender, prestava a maior atenção. Ela disse que o inverno era mais frio porque a Terra estava mais distante do sol e o verão mais quente porque mais próxima dele. Minha avó tinha ido para a Itália visitar seus parentes no inverno daqui “porque lá era verão”, me explicou vovó. Então perguntei à professora (que ainda não era “tia”) como isso era possível. Não me lembro bem o que ela disse, só sei que o episódio terminou na diretoria.

Hoje vejo netos felizes na van do colégio com seus amigos. Adoro conversar com eles que se interessam em saber coisas que eu gosto de explicar, só que eles, não raro, têm sempre mais coisas para me explicar - uma delícia ouvi-los.

Adorei ver meu bisneto de pouco mais de um aninho de vida escalar o sofá e, como um alpinista, galgar seu encosto e finalmente, num extremo alongamento corporal, acionar o interruptor e apresentar aquela cara de vitória ao acender a luz. Nem posso imaginar o quão maravilhosa deve ser essa sensação, aliás só disponível para alguém que nunca usou um cueiro! 


E como é bom ver uma criança de dez anos mostrar como se pesquisa no Google e como se entra no Facebook para ver os vídeos do fim de semana de seus amigos, alguns da Dinamarca outros dos Estados Unidos ou da Itália!

Eu entendo que certamente muitos tiveram infância mais feliz do que a minha e, afinal, ter saudades não é crime. Por outro lado, glorificar o Ki-Suco, o Chá de Camomila ou o Biotônico Fontoura só mesmo para quem não faz a menor ideia de que, em pouco mais de quarenta anos, a mortalidade infantil foi reduzida em 76 por cento! 

Quem quiser que verifique e faça as contas de quantos bebês foram salvos por essa horrorosa   modernidade. Fala sério...  quanta coisa, felizmente,  mudou nesses últimos tempos!

quarta-feira, 5 de maio de 2021



- EU E A NESPEREIRA -


Conto esta história a partir de uma das mais importantes, ricas e proveitosas decisões que tomei em minha vida, quando fui procurar apoio psicológico. Tive sorte de encontrar tudo o que foi, para mim, o melhor caminho - o da Análise Transacional, tema que tratei neste blog na postagem “Os Jogos da Vida”.

Concluí o curso 101, que é o inicial, com um trabalho que teve o mesmo título deste texto e que começa lembrando que todos nós temos um tio, um primo mais velho, um avô ou mesmo um amigo que sempre nos oferece uma palavra sábia ou uma história reveladora. Podem ser mesmo frases ou ensinamentos dos quais ainda nos lembramos com sentimentos de saudades, sim, mas sempre agradáveis.
 

Ainda criança, morava com pai, mãe e irmão mais novo num sobrado das Perdizes com um grande quintal onde, entre plantas rasteiras, arbustos e algumas árvores maiores, havia uma nespereira plantada num recorte frio da casa aonde não chegavam os raios de sol.

A nespereira foi crescendo rapidamente e já chegava perto do beiral do telhado, mas para minha frustração nada das esperadas nêsperas. E foi um daqueles tios que mostrou a tal sabedoria, explicando que, normalmente, essa árvore não cresceria tanto assim, ou nem tão rapidamente, mas ela precisava de luz solar para produzir seus frutos, disponibilizar suas sementes e assim preservar sua espécie - era a lei da natureza.

E não deu outra, porque quando as folhas dos galhos mais altos avistaram finalmente o astro-rei, as primeiras flores despontaram e fizeram surgir, ainda que timidamente, o lindo amarelo de suas pequenas frutas.

Antes ainda de me sentar nos bancos da escola primária, já aprendera eu essa preciosa lição - que seres vivos, sejam eles plantas, animais ou mesmo humanos, nascemos todos com nossas próprias e únicas características e, sem exceção, recebemos em nossa origem vital, uma determinação quase mágica para viver, crescer e multiplicar.

Essa é a missão fundamental que se observa desde nossa concepção, na luta do feto para vencer todos os obstáculos e compor estrutura física suficiente para romper o jugo da placenta e então respirar por sua própria conta e risco.

A nespereira alterou seu projeto-padrão para suplantar a barreira daquele telhado opressor e receber energia solar, única maneira de garantir que suas funções orgânicas fossem capazes de dar conta da missão que a natureza lhe confiara.

Mais tarde, e como consequência desse aprendizado, descobri também que, a qualquer tempo de nossa vida, estará imperando nosso compromisso de buscar o sol, mesmo e principalmente quando o ambiente parecer muito frio, e sejam quais forem as vozes interiores que nos tentem dissuadir de nosso propósito.

E por termos recebido a graça do livre arbítrio, cabe-nos, não só por nós, mas pelos que amamos e que nos amam, o dever maior de nos cuidar, de viver, crescer e prosperar.

domingo, 4 de abril de 2021

- LÉO -  


Tessy foi nossa primeira e maravilhosa Border Collie que, além da alegria, inteligência e hiperatividade próprias da raça, nos deu também três belas ninhadas. A primeira e a última com um macho de seu canil de origem, lá no Butantã, em São Paulo. A segunda foi com o Lupi, o cãozinho do Sérgio e da Rose ao qual, depois da cruza, passei a devotar meu mais profundo respeito pelo êxito obtido após a inacreditável tarefa de romper vários vergalhões de aço do recinto onde estava isolado, coitado, e ainda da malabaríssima performance ao emprenhar uma parceira duas vezes mais alta, essa, agora sim, coitada, no sentido etimológico da palavra.

Mas foi só no terceiro coito que ganhamos Timão (assim nomeado quando o alvinegro paulista deixou a segunda divisão em outubro de 2007) e Léo, assim chamado porque sua cor destoava dos demais e lembrava muito a de um leãozinho. A restante meia dúzia dos oito puppies foi doada para bons amigos, dos quais, nesse momento, lembro-me do João, grande amigo baterista, hoje gerente de cultura da Prefeitura dessa nossa adotada Extrema.

Léo já nasceu, cresceu e viveu de forma incomum, a primeira delas na própria concepção, pois temos sérias suspeitas de que, apesar da cruza ter acontecido e ter sido registrada lá no canil do Butantã, há indícios de que um último óvulo possa ter sido fertilizado a partir de uma pulada de cerca no momento em que chegamos com Tessy de volta ao sítio.

Vivemos uma curiosa época na qual a diversidade vem ganhando muito valor e Léo, aproveitando-se dessa onda, tornou-se o líder, o macho-alfa. E até ele, o Timão, apesar de típico tricolor da raça, mais forte, ágil e natural merecedor dessa glória, teve de aceitar a indiscutível liderança de seu irmão.

Além dessas, as outras qualidades do querido Léo foram o acolhimento, a amizade e a segurança que ele sabia tão bem expressar e que quase todos sentiam, retribuíam e não economizavam atenção e carinho. Quantas vezes foi ele o cicerone dos que visitavam o sítio pela primeira vez, quantas vezes acompanhou amigos e familiares pelas trilhas na mata ou por longas caminhadas pelas vizinhanças rurais de nossa propriedade.

Léo sofria de um problema no sistema digestivo, decorrente, muito provavelmente, de uma mordida de cobra, sofrida quando tinha uns dois anos de vida. Seu pâncreas tornou-se deficiente e exigia um reforço contínuo de creatinina. Essa moléstia acabou afetando suas adrenais, o que nos obrigou a ministrar remédios mais fortes e que o mantiveram vivo, mas com o organismo bastante prejudicado, embora ele ainda se mostrasse bastante ativo.

Léo era nosso mestre de cerimônias, função da qual nunca abriu mão até seu último dia. Já semiparalisado, arrastou-se, naquela manhã do sábado de Aleluia de 2021, para o local de onde monitorava a chegada dos automóveis para depois galopar até o estacionamento e manifestar, com vigorosos abanos de rabo, as melhores, mais alegres e autênticas boas-vindas aos visitantes.

Ah, que saudades...




sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

  --  O ANO DA PANDEMONIA – PARTE I  --



Como prometi lá na postagem inicial, escrevo esse texto só para registro, muito a contragosto e porque promessa é dívida.

O ano de 2020 nasceu sob ameaça de dois problemas causados por diferentes agentes, primeiro, uma pandemia fruto da ação de um microscópico elemento, cuja vitalidade ainda é discutida, e segundo, um pandemônio estrelado por elementos certamente muito vivos, macroscópicos e de nossa própria natureza humana.

Como resultado estamos vivendo, com perdão do neologismo, uma pandemonia, da qual não se sabe ainda se o primeiro agente foi criado ou desenvolvido pelo segundo. 

O que a ciência sabe do COVID19 ainda é pouco, um vírus senão novo, mas renovado e que gerou pesquisas em vários países e uma corrida para obtenção de vacina e/ou de medicamentos que pudessem ajudar na cura dos que foram infectados.

Já agora, iniciando 2021, temos quase um ano de dúvidas, já superamos os dois milhões de mortos no mundo, duzentos mil no Brasil, meia dúzia de vacinas, algumas parcialmente garantidas pela nossa Anvisa. Isso tudo é uma coisa nunca antes vista no planeta, pelo menos não com essa intensidade, globalidade e velocidade.

Estatisticamente estamos falando, grosso modo, em uma morte por conta do Covid19 em cada mil habitantes. Entretanto não se sabe quando essa pandemia vai acabar, até porque já ocorrem novas ondas, reincidências e mutações do tal vírus.

A segunda tragédia é o pandemônio que se instalou na direção do país, governantes que parecem não enxergar a tragédia das vidas que estão sendo destruídas e que deixam as pessoas (devo dizer eleitores?) atônitas, na dúvida entre usar as proteções que a ciência não cansa de falar ou acreditar no diminutivo governo da gripezinha.

Chegamos à inacreditável situação onde a virulência do Covid19 passou a ser uma discussão de caráter ideológico: de um lado um grupo menor, mas poderoso, que elegeu, sem nenhum dado científico, um medicamento como eficaz no combate à doença, e "não se preocupa" com a vacinação; de outro lado, os políticos de ocasião que, claro, só têm como alvo as eleições, mas que de alguma forma seguem, ainda que por interesses outros, a comunidade científica.

Como consequência dessa dicotomia o povo, em geral cansado do isolamento forçado, impedido sequer de buscar o calor humano dos encontros, vendo o desemprego atingir números perigosos, opta, consciente ou inconscientemente, pelo caminho mais fácil, desqualificando o perigo pandêmico.

O ANO DA PANDEMONIA – PARTE II


Metade de Janeiro já passou e assistimos horrorizados à BRIGA DAS VACINAS.

Voltaremos ao assunto, quando da atualização de um placar virtual que até agora indica vitória do Vírus por 2 a 0. 

Mas ainda estamos do primeiro tempo.

Quem viver verá.

Até mais.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

 A NEVES DA ROCHA

 

Na postagem inicial desta série, onde fiz o “resumo resumido” da minha história, passei depressa por uma das fases mais interessantes, divertidas e inesperadas. Refiro-me ao trecho que começa com a construção da casa no Itanhangá, e da escada caracol adquirida por leilão no Joquei Clube do Rio (está na postagem "O LIVING ROOM"). Agora cumpro o prometido lá: relatar um dos tantos episódios vivenciados naquele percurso.

A rua era a Engenheiro Neves da Rocha e não sei se seu traçado, que se iniciava reto e firme, esboçava uma praça a sua esquerda, e depois uma quadra, voltando bruscamente sobre si mesma a fechar um desenho urbano pouco comum, tinha algum poder sobre as pessoas. Ou se era a cachoeira que, lá bem atrás do loteamento, ao oferecer obstinadamente o som suave da música de suas águas, era quem desempenhava o papel de produzir fortes e ricas amizades naquele nosso microuniverso

Isso para dizer que Jorjão e Teca do lado da cachoeira, Marisão e Tio Heitor do lado da rua que voltava, faziam com que nós, eu e Sonia, paulistas pouco habituados aos costumes cariocas, sentíssemo-nos totalmente em casa, mesmo estando em nossa casa.

Lembro-me de que o primeiro encontro real desses seis personagens foi proposto por este paulixxta que lhes fala, sugerindo (por óbvio) uma pizza em algum lugar da Barra da Tijuca. Não, não vou falar das pizzas cariocas com ketchup, não neste momento. Falo da hora da conta, que este esdrúxulo paulista se propõe pagar, esperando aquelas gentis manifestações dos demais cavalheiros à mesa.

Nunca, mas nunca me senti tão idiota ao constatar, incrédulo, uma total reversão de expectativa. Nunca, mas nunca mais saímos para uma pizza porque, já que é assim, pizzas e quaisquer outros eventos gastronômicos terão de acontecer aqui, na minha casa. E tenho dito!
Tem coisas que não mudam nunca...

Minto, teve uma coisa que mudou.

Era um dia festivo, não me lembro de que festa, mas Marisão, toda de branco com seus lindos e loiros cabelos me falava de um concurso de rádio do qual participara (e depois soube que levara o primeiro prêmio). Era um programa chamado A Grande Chance, de um tal de Flavio Cavalcante.
Minhas orelhas se levantaram como aquelas de um bem treinado cão de caça, arriscando:
- Claro, quem não se lembraria daquele personagem!
E passados alguns segundos de silêncio insisti:
- Então posso considerar que você canta.
- Cantava, respondeu sem me olhar.
Achei estranha a forma como disse, então ousei mais um passo:
- Mas quem cantou, ainda canta.
- Eu não. Parei de cantar há algum tempo, não tenho mais ânimo para isso, nem sei se ainda sei cantar!

Ah, não tive mais dúvidas de que eu estava no caminho certo. Só não continuei nessa linha de conversa porque já sabia que qualquer coisa que dissesse seria de pronto contestada. Aquele livro do Eric Berne já tinha me ensinado muitas coisas importantes sobre os mistérios da comunicação humana (leia "OS JOGOS DA VIDA" aqui neste blog).

Sentei-me ao piano que estava bem ali do nosso lado e comecei a brincar com algumas melodias sondando disfarçadamente a expressão facial de Marisão. Em alguns momentos ela sussurrou uma letra conhecida e eu, fingindo não prestar muita atenção, experimentei alguns acordes sugerindo a melodia a seguir. Esse processo durou não sei quantos segundos, minutos ou horas. Naquele astral não havia nenhum tempo real a ser medido. Então podemos agora pular algumas semanas, talvez meses. 

O que se vai ver naquele living-room, não é só a escada caracol, mas um desajeitado contrabaixo num dos cantos, uma velha bateria do outro e lá naquela poltroninha perto da janela (não, de lá não se via o corcovado, o redentor, que pena Vinícius...), mas lá estava o violão.
 
Só posso dizer que Marisão recuperou o que que nunca tinha perdido, a voz mais afinada, o timbre mais delicioso e o ritmo mais contagiante. Ela cantava de tudo, de bossa nova a cançonetas napolitanas, de rock a valsinhas das vovós, de jazz a partido alto. Eu fazia o melhor que podia, mas ainda bem longe do que gostaria e muito mais longe do que o talento dela merecia.

Naquela época ainda não sabia nada sobre cifras, só contava com meu ouvido, que já tinha sido absoluto na minha adolescência, mas já era relativo, o que nem sempre me permitia transitar pelas tonalidades mais apropriadas à bela voz de minha cantora.

Não sei do que tanto conversavam Tio Heitor e Tia Sonia, mas eles não paravam de falar e era possível observar deles lances ocasionais de olhares orgulhosos ao observar suas caras-metades se divertirem tanto com aqueles números de Piano-Voz.

A presença de Jorjão e Teca tornava os encontros ainda melhores, eles curtiam tanto que não se contentavam em ouvir, mas participavam como podiam dos saraus que aconteceram durante todo o tempo em que moramos na inesquecível Neves da Rocha.

NOTA:

Marisa Rossi
Começou em Belo Horizonte nos anos 60, junto com os participantes do programa Brasa 4 da TV Itacolomi. Mudou-se para o Rio de Janeiro onde se graduou em Jornalismo e participou de diversas atividades artísticas na TV Tupi com destaque para a conquista do primeiro prêmio em “A Grande Chance” sob condução de Flávio Cavalcante em 1966. 
São doze faixas sendo que a última é a música é “Libera” (Free Again), com a qual venceu o concurso acima citado. Ouçam-na clicando em:
https://youtu.be/LbLyhgUm0bE


 



quinta-feira, 21 de janeiro de 2021


COISA DE ÍNDIO 




Naquela segunda-feira, dia quatro de setembro de 1989, saí muito cedo de casa e enfrentei a Via Dutra até São Jose dos Campos, onde me juntaria a um grupo de engenheiros e técnicos do setor de Sensoriamento Remoto do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), então meu cliente.

De fato, lá iniciamos uma viagem em ônibus do próprio CTA (Centro Técnico da Aeronáutica) para um hotel fazenda onde realizaríamos um seminário sobre Desenvolvimento de Líderes, com palestras, filmes, música e artes plásticas, para cuja realização convidei alguns parceiros.

A viagem durou quase toda a manhã e o assunto não foi outro senão o jogo Brasil X Chile do domingo, cujo resultado nos deu condição para disputar a Copa do Mundo de 1990. Foi um jogo tumultuado no qual o Brasil ganhava de um a zero quando uma torcedora atirou um sinalizador em direção a Rojas, goleiro do Chile, o qual simulou ter se contundido (muitos de nós se lembram disso...). O time do Chile, já punido por aquela simulação, acabou se retirando do jogo aos vinte e oito do segundo tempo. Com isso a FIFA deu o placar de dois a zero para o Brasil, mas quem ganhou aquela copa, na Itália, foi a Alemanha.

Durante a viagem ficou clara a preocupação de um dos engenheiros do grupo que recebia diversas ligações radiotelefônicas, às vezes até parando o ônibus e saindo dele para obter melhor sinal. Vivíamos uma época anterior à da telefonia móvel, só implementada no Brasil alguns anos depois. Em consequência da comunicação precária, só pudemos compreender a extrema seriedade do problema ao chegarmos a nosso destino.

Quem não chegou a seu destino foi o voo Varig RG-254, com quarenta e oito passageiros e seis tripulantes a bordo, tendo no dia anterior decolado do aeroporto de Marabá, ou seja, no domingo, três de setembro, às 17:35h, com previsão de pousar em Belém do Pará ainda antes do pôr do sol.

Falar em posição do sol na aviação comercial não era proibido ainda, como parece ser nos dias de hoje, dada a sofisticação tecnológica da instrumentação aeronáutica. Mas parece que o comandante Cézar Augusto Padula Garcez não se entendia bem com as posições do astro rei, ou as considerava coisa de índio. Ah, houvesse um índio naquela tripulação e quantas vidas se salvariam!

A questão que preocupava não só nosso engenheiro, mas a Varig, o SALVAERO (entidade de busca e salvamento da aeronáutica) e todos os que acompanhavam o mistério daquele voo era: onde estará o Boeing 737-200, matrícula PP-VMK?

Nosso diligente e preocupado engenheiro, já tinha essa resposta lá pelas nove da manhã, com a localização precisa do avião (ou de seus destroços) e de seus viajantes (ou de seus corpos). Só que o mundo “lógico” se recusava a acreditar, pois o RG-254 e estaria “com certeza” na faixa Marabá – Belém, afinal muitos testemunharam sua última decolagem. Mas o local do acidente segundo transmissões do satélite era perto do Parque do Xingu, cerca de 1.200 km do destino planejado do voo. Impossível!

Um outro engenheiro que assumira o controle da estação receptora de satélites em Cachoeira Paulista já havia informado, por repetidas vezes, a localização do Boeing que, destroçado ou não, ainda emitia um sinal automático acusando sua localização.

Mas a SALVAERO, a Varig, e para piorar, as Tvs e Rádios que entraram no circuito (e que tinham tudo “em primeira mão” e de “fontes confiáveis”) propalavam notícias de estrondos e clarões observados nas proximidades da rota planejada daquele Boeing. Parece que ninguém levava a sério os dados de satélites, até porque o sistema de Cachoeira Paulista havia sido instalado recentemente e era melhor “não dar muito crédito a essas novas tecnologias”, afinal o avião, “definitivamente não poderia estar lá”.

(Digam se isso não se parece um pouco com a atual polêmica sobre as vacinas para o Covid-19, uma discussão sobre detalhes técnicos de áreas das quais seus atores, políticos ou não, jamais tiveram o menor conhecimento).

Existe uma forte razão primária para explicar o desaparecimento daquela aeronave que é a seguinte: enquanto o copiloto fazia a inspeção externa no Boeing pousado em Marabá, o comandante Garcez ajustava a nova rota para Belém que era 0270, com esses quatro dígitos que, conforme as novas normas da companhia, significaria um ângulo de 027 (vinte e sete graus) em relação ao Norte. Assim Garcez girou o dial do HSI (indicador de posição horizontal), que apresentava números com três dígitos, até que o ponteiro em forma de aviãozinho chegasse ao número 270 (duzentos e setenta graus). E tudo pareceu bem para o apressado comandante, afinal o primeiro tempo do jogo terminaria em poucos minutos.

Mas podemos encontrar uma razão secundária: se foi a pressa ou porque sabia que seu superior não gostava muito de perguntas, o copiloto Nilson de Souza Zille, ao invés de recitar o checklist, achou melhor olhar para o HSI do comandante e ajustar o seu da mesma forma.

Em aeronáutica sabe-se que acidentes nunca decorrem de uma única causa. De início a Varig tentou restringir o problema à falha dos dois pilotos. Mas investigações posteriores levantaram diversas outras possíveis causas, como a elaboração de um mapa que induzia o leitor a erro e a desatenção do Controle de Voo de Marabá que não observou a proa do avião em direção totalmente diferente da prevista. O próprio comandante, além do erro crasso já cometido, errou mais ainda ao não informar os pilotos de outras aeronaves, com os quais teve contato por rádio durante o voo, do fato de que ele estava completamente perdido na selva.

É preciso destacar ainda a falha do SALVAERO que, se desse crédito às informações de satélite, obviamente não poderia evitar o acidente, mas certamente teria evitado a morte de pelo menos uma passageira que não resistiu ao tempo de espera do socorro.

E quais foram os verdadeiros heróis da tragédia? Bem, quatro homens, depois de 36 horas quase sem dormir, um com ferimento na cabeça outro na perna e dificuldade para andar, decidiram enfrentar a selva, afinal com um pouco de sorte, uma fazendinha ou um povoado talvez pudessem ser encontrados.

Assim, no clarear da terça-feira, Epaminondas, Afonso, Antonio Farias e Marcionílio saíram em uma busca desesperada, com uma caixa de sanduiches azedados, três isqueiros, um canivete, um colete salva-vidas e dois foguetes de sinalização.

Sob uma mata fechada de onde mal se podia ver o céu e depois de uma hora de caminhada, depararam, exultantes, adivinhem com que? Com bosta de vaca! Foi com esse alento que conseguiram fazer outras três horas e meia de caminhada para finalmente chegarem a um roçado e avistarem uma casa de fazenda. Esse momento marcou o triunfo da expedição e o salvamento de muitas vidas. 

Porém foi difícil para aqueles quatro homens, num primeiro momento, acreditar que estavam na fazenda Crumaré do Xingu, município de Luciara, estado de Mato Grosso! 

Muito, mas muito mais difícil do que isso, foi convencer, por rádio, as autoridades do SALVAERO, de que eles fossem, de fato, quatro dos sobreviventes do acidente do RG-254. E mais, que eles, um Boeing destruído, alguns corpos e diversos outros sobreviventes estavam realmente no Estado de Mato Grosso! 


Quem quiser conhecer muito mais sobre este e outros dois acidentes aéreos, procure o livro “Caixa Preta” de Ivan Sant’anna que discorre sobre eles com enorme riqueza de detalhes.


Ah, sim, o seminário com o pessoal do INPE foi bem legal!