quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

OS JOGOS DA VIDA 

A ORIGEM


Foi num voo que iria me levar de volta para casa e que decolou de Belo Horizonte, local para onde deveria ter ido encontrar algum cliente, não me lembro quem, afinal, tenha paciência... isso faz mais de meio século! Porém, do que relato a seguir, jamais me esquecerei.

A decolagem já estava atrasada devido a condições atmosféricas adversas quando tivemos notícia de que esse atraso iria se prolongar por mais uma ou duas horas. Tempo ruim também em BH, não havia muito o que fazer a não ser dar mais uma xeretada na banca de revistas em busca de qualquer leitura que me distraísse durante o elástico tempo de espera anunciado (porque acaba sempre sendo maior).

Antes de prosseguir com a história, quero conversar aqui sobre uma questão que sempre me persegue. Conversar? Sim, é possível conversar com alguém ausente através da técnica da “cadeira vazia”. É como o jogador de xadrez que joga com ele mesmo, colocando-se cada vez de um lado do tabuleiro e raciocinando como se fosse o dono do lugar. 

É o seguinte: você já observou como diferenças, às vezes insignificantes, podem determinar alterações dramáticas no nosso futuro? Certamente que sim, mas logo esqueceu o assunto, não foi? Afinal, é vida que segue. Costumamos dizer que se o VAR não tivesse validado aquele primeiro gol do nosso adversário, o resultado teria sido nossa vitória, porque nosso time do coração acabou fazendo um gol no final do segundo tempo. Alguns poderão concordar com esse raciocínio, mas outros dirão que não, afinal se o primeiro gol fosse validado, o jogo seria completamente outro – no que estarão cobertos de razão. Então espero estejamos de acordo com o fato de que, até as micro-decisões que tomamos a cada momento acabam sendo cruciais para o que vai suceder mais adiante. 

Retomando a história, minha micro-decisão de comprar um livro naquele momento ocioso, não deveria fazer diferença alguma, não iria mudar o andar da carruagem (no caso a rota da aeronave), o humor do piloto ou das nuvens negras e, muito menos, o desenrolar dos acontecimentos na minha vida. Mas não é assim que o universo funciona.

Eu comprei um livro porque o título me chamou atenção: Os Jogos da Vida. Fiquei sabendo que foi escrito por um médico psiquiatra norte-americano nascido em Montreal, Canadá, chamado Eric Lennhard Bernstein e conhecido como Eric Berne (1910 – 1970).

Comecei a ler numa cadeira de aeroporto, continuei a leitura atenta durante o voo e fui acabar de ler na cama, em casa. O livro explicava coisas que entendi como dificuldades que enfrentamos no dia a dia e possibilidades de melhor lidar com elas, tudo com uma linguagem bastante lógica de fácil  compreensão.

Como na época ainda não tínhamos googles, youtubes nem redes sociais, fiquei aguardando alguma oportunidade para saber mais sob aquela linha de pensamento tão clara e objetiva. E levou anos para que isso acontecesse.

O ACHADO

Passou o tempo e a empresa da qual eu e meus dois sócios éramos também diretores cresceu e se transformou em Sociedade Anônima com a inclusão societária, porém minoritária de uma entidade que promovia desenvolvimento empresarial. Fui o indicado para participar de um seminário de fim de semana promovido pela tal entidade. E qual não foi minha surpresa quando vi que o programa incluía um dia de trabalho sobre a teoria e as técnicas desenvolvidas pelo autor daquele livro: o Eric Berne.

Participei ativamente daquele evento e fiquei sabendo que o autor, que falecera alguns anos atrás, contava com dedicado grupo de trabalho que levou adiante, aperfeiçoou e acrescentou novos instrumentos às práticas concebidas e já aplicadas com sucesso, as quais se organizavam sob o título de Análise Transacional (AT).

A piada óbvia de uma das palestrantes era de que o tema ministrado tratava da maneira como as pessoas transacionam e não de como elas transam... Ao final do evento, procurei-a, também e obviamente para transacionar, na busca de mais informações, de saber quem eram e onde estavam os profissionais locais da AT, como fazer contato, como aprender com eles e tudo o mais. Tivemos um bom tempo para isso voltando no mesmo voo.

Claro, um caso particular não comprova minha tese inicial, mas para mim, o atraso de um voo, que causou a compra e leitura do livro, que causou o interesse num evento, que me levou a um evento, depois a  uma terapia, à formação em A.T. e a uma nova prática profissional, foi o bastante para mudar minha vida e encarar seus bons e maus momentos. 

E, o mais importante, aprendi a ser grato até a um mau tempo!

 


INFORMAÇÕES SOBRE ANÁLISE TRANSACIONAL A QUEM INTERESSAR POSSA.

No Brasil contamos com UNAT (União Nacional de A. T.), com a ALAT (Associação Latino-americana de A.T.) entidades divulgadoras e certificadoras de profissionais da área. A formação em A.T. se inicia por um curso básico chamado 101, aberto a todos os interessados. O curso 202 tem um ano de duração e prepara profissionais de medicina, psicologia e pedagogia para os campos clínicos e educacionais. Mas a A.T. se aplica também ao estudo dos grupos e organizações e para tal conta com uma especialização que atende a profissionais nas áreas da administração e negócios, gerência empresarial e formação de líderes. Existe vasta bibliografia sobre Análise Transacional e também há grupos praticantes tanto no Brasil como na Argentina, Chile, Peru.

No meu caso, fiz o curso 101 e quem o ministrou foi o Beto, com quem não faço contato há muitos anos, mas a quem considero um grande amigo - Dr. Roberto Tadeu Shinyashiki, médico psiquiatra, palestrante e empresário.

Em seguida fiz também terapia e com ele mesmo cursei e concluí o 202, recebendo meu título de membro regular da UNAT e ALAT para a área organizacional em 1983. Frequentei todos os congressos anuais de 1981 a 1995 e conheci inúmeros brasileiros, norte e latino americanos que trabalhavam com a Análise Transacional. Atendi mais de uma centena de empresas no Brasil, Argentina, Costa Rica e fui muitas vezes ao Peru onde também tive ótimos clientes e participei de eventos como palestrante convidado. Atuava na condução de cursos e seminários, diretamente ou em parceria com organizações promotoras de eventos. Tive alguns ótimos parceiros que dividiam a carga comigo ou a complementavam com suas especializações na área da psicologia.

domingo, 27 de dezembro de 2020

 



O LIVING ROOM 



Os anos setenta, como já contei na postagem inicial, foram para mim os tais “anos dourados”, e não os cinquenta, como cantava Chico Buarque nas rádios da época. O tempo útil que sobrava da semana era a sexta-feira no avião, uma vez que nosso belo escritório ficava em Botafogo, mas a obra se estendia pelos quinhentos quilômetros do porto de Tubarão até as áreas mineiras das Minas Gerais.

E era nesse tempo que eu lia a parte mais leve dos jornais, a ilustrada, a do lazer e dos eventos culturais. Foi numa dessas que vi um edital do leilão de um bar e uma biblioteca do Joquei Clube do Rio de Janeiro. Nunca me interessei por cavalos e muito menos pelas suas conquistas. Não sei o que me chamou mais a atenção, se o termo “biblioteca” ou, mais provavelmente, o termo “bar”.

Quanto ao primeiro, logo vi que não se tratava de raças ou rações para equinos, nem de selas ou bridões, muito menos de prêmios conquistados ou novidades veterinárias. Quanto ao segundo, preferi ler o edital completo antes de me entusiasmar muito... O que se estava a leiloar eram estantes para livros, sobre um mezanino com escada caracol, pisos de tábuas largas e corrimãos trabalhados. O capítulo bar não citava líquidos fermentados, muito menos destilados, mas sim um balcão enorme, com prateleiras de madeiras entalhadas.

O impulso de fechar aquela página sumiu ao me lembrar de minha arquiteta, que também tinha funções de esposa (claro, além de tantas outras que mulheres adoram enumerar, e com toda a razão...) Fato é que ela estava no momento procurando soluções para acomodar um bar junto ao living da casa que estávamos a construir no Jardim Itanhangá, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. E não é que as tralhas que o Joquei estava leiloando, certamente para se livrar delas antes de inaugurar sua nova sede de campo, poderiam até ser úteis?

Mas o leilão era dia... hoje? É o que dizia o edital, que prossegui lendo. As peças poderiam ser vistas no mesmo dia, quer dizer... hoje? Parece que sim, e até as 14 horas! Olhei para o relógio  e depois para a janela do avião, dia lindo, sobre a água, já se via a baia de Guanabara? Eu me distraí com aquele leilão, já devíamos estar nos preparando para pousar no Santos Dumont.

Mas onde o tal leilão aconteceria? Voz feminina interrompendo: “...senhores passageiros... encosto na vertical... apertem seus cintos...” Antes de fechar o matutino anda vi o endereço: Av. Rio Branco, número... já sei onde é! Fechei. 

Era quase uma da tarde. Será que dá tempo? Pensei Rio, lembrei Caetano, Vinicius, o Cristo do Corcovado, é sexta-feira e estamos no Rio de Janeiro. É óbvio que vai que dar tempo!

Para encurtar esta conversa, depois de ter visto, ainda que superficialmente e desmontados, num galpão, não só o bar e a biblioteca, mas arandelas e grades de sacada tudo isso inspirado no neoclássico inglês, não tive como não arrematar um caminhão de ferros e madeiras que na sexta-feira seguinte chegou ao Itanhangá com sua preciosa carga. Mas não o bar, oh decepção. A peça tinha uns oito metros de extensão não caberia nem sonhando em nossa sala. Mesmo assim o resultado não correspondeu às expectativas. Simplesmente superou-as, e muito! 

E tem mais, as arandelas eram maravilhosas peças de bronze, as grades de sacada que pareciam ser de ferro, depois de limpas revelaram também seu bronze e, claro, dispensaram qualquer retoque. A biblioteca era uma peça magnífica de madeira trabalhada com cristais bisotados.
A escada em caracol tornou-se a “prima donna” daquele, agora sim, merecidamente chamado, “Living Room”.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020



TECNOLOGIA E O TREM DAS ONZE


Contei já a história da menina mordida pelo cão raivoso (*) e que foi salva pelo radioamadorismo. Mas ainda não contei porque me interessei tanto por essa atividade e acabei me tornando o PY2-DJK. 

Isso aconteceu porque, com oito ou nove anos ganhei um kit de rádio galena supersimples (não sei quem me deu) que funcionava sem nenhum tipo de energia elétrica e com o qual se podia ouvir as emissoras mais fortes de cidade. Eu mal acreditava que aquilo seria possível! Como bom curioso (há quem diga que isso é típico dos cancerianos) queria saber mais. 

Anos depois tive a influência de meu pai que, muitas vezes, às nove da noite, gostava de ouvir as ondas curtas da BBC, emissora londrina que irradiava o Big Ben e suas doze badaladas da meia-noite; e depois os comentários dos jornalistas sobre as notícias do dia no Reino Unido e do mundo. Eu o observava, nos meus doze anos, cada vez mais fascinado com o milagre das ondas eletromagnéticas. 

Aquele aparelho no qual meu pai ouvia a BBC era uma rádio vitrola de móvel, na qual ele gostava também de apreciar um Tchaicovsky com a orquestra Pops de Boston, em especial o Nutcraker (Quebra-Nozes) gravado naqueles bolachões de 12 polegadas, ainda em 78 rpm. 

Poucos anos após chegaram os discos de vinil de 10 polegadas, mas no novo padrão de 33.3 rpm - e eu não me conformava em não poder ouvi-los na nossa radio-vitrola. Poderíamos até trocar a cápsula com agulha para os novos sulcos mais finos, mas e a rotação do prato? Não achei outra opção senão desmontar o mecanismo, retirar o pequeno motor, abri-lo e levar o rotor para uma oficina de um torneiro mecânico lá das Perdizes. Pedi que ele reduzisse o diâmetro da ponta do eixo que acionava a polia, para a medida que eu calculara (um primo que já estava na Poli me ajudou nessa façanha físico-matemática). 

Nessa altura meu pai estava tão envolvido com seu trabalho que, felizmente, esqueceu um pouco do Big Ben e do Tchaicovsky e eu pude me deliciar com o Rock-and-Roll do Elvis Presley, o Jazz do Stan Kenton e tantas outras músicas na rotação correta! Até porque depois que mudamos para o Pacaembu ninguém achou mais os velhos discos de cera, talvez tivessem se quebrado no transporte, sei lá. Juro que não fui eu!

Mais tarde ia passear na Santa Ifigênia, apreciar as novidades do mercado da eletrônica. Numa dessas comprei um chassi de rádio e comecei a montar, peça por peça, fio por fio, um rádio transmissor básico a partir de um circuito publicado numa revista (e aí foi falta de experiência mesmo). Seriam precisas ainda muitas peças e muitos cruzeiros até que eu pudesse realizar meu sonho – construir e operar meu próprio equipamento de rádio comunicação. 

Tive de adiar o projeto, estudar um pouco mais de inglês e entender melhor o “The Radio Amateur’s Handbook”, único livro disponível sobre o tema. Eu já sabia que um transmissor seria mais simples de construir, mas o receptor seria o problema maior. Nenhuma chance de praticar radioamadorismo com as ondas curtas de um rádio comum (e eu já tinha construído um). Nas lojas especializadas, dos especiais  só havia modelos importados e de custo elevado. 

Superei essa frustração voltando aos projetos de som logo que surgiu a “Alta Fidelidade”. Para isso eram precisos amplificadores melhores, cápsulas mais sensíveis (de relutância variável) e alto-falantes especiais. Com menos roncos e chiados, o som pedia melhores alto-falantes para os graves (woofers) e para os agudos (tweeters) e exigia caixas desenhadas para acomodá-los física e acusticamente. Nessa fase, como era para atualizar o som da família, consegui aprovar um crédito suplementar, ainda insuficiente, mas pouco a pouco fui montando o som de alta fidelidade. 

Logo depois apareceram os estereofônicos, que exigiam praticamente a duplicação do sistema - o som seria captado e trabalhado em dois canais independentes. Preferi deixar isso quieto, o som já estava legal. 

O projeto radioamador ficou para bem mais tarde – só foi retomado e realizado depois da faculdade, quando começou o período no qual aconteceram muitos episódios deliciosos como aquele da menina e do cachorro louco. 



E O FUTURO JÁ ESTÁ PRESENTE 

Agora, saltando de vara sobre o tempo, vou fechar essa crônica com um comentário que está pululando na cabeça de muitos de nós, estupefatos como avanço exponencial da tecnologia das comunicações. 

Só para dar uma ideia, leiam esse trecho retirado de informações que recebo do “Clube do Hardware”, um site que, entre outras funcionalidades, envia as novidades na área: 

A Nokia deve liderar o projeto 6G - Hexa-X, que começará em janeiro de 2021, com duração prevista para dois anos e meio. Ele contará também com as companhias Ericsson, Siemens, Orange e Telefónica, além de universidades e institutos de pesquisas.  
Segundo estimativas, a rede 6G deverá ser adotada apenas em 2030 e usará frequências na faixa dos terahertz e será até oito mil vezes mais rápida do que as atuais. 

No Brasil o processo de adoção da rede 5G ainda depende da liberação de leilões das faixas de frequência pela Anatel. Ainda não se decidiu se a gigante Huawei participa ou não, e essa é uma questão central para publicação dos editais. Inglaterra e Estados Unidos (com Trump), já decidiram que não. E agora, Joe? E agora, Jair? 


Para esclarecer: no Brasil, atualmente estamos testando o 5G DSS, de forma extremamente precária, compartilhando vias de transmissão com o 4G. Ou seja, é como se estivéssemos colocando um trem-bala nos trilhos da maria-fumaça que puxava o TREM  DAS ONZE!  

(*) Veja "O VOO DE DOMINGO AO MEIO DIA"

domingo, 20 de dezembro de 2020

 DOUCE FRANCE

 

Só depois de longos quinze anos, pela primeira vez na minha vida como gente grande, tirei férias. E pela primeira vez deixamos os pentelhos com os avós e fomos passear na Europa. Tinha de ser em alto estilo, né?

Meu empregador não brincava em serviço e não perdia viagem, principalmente quando se tratava de viagem dos outros. Arranjou-me uma encrenca para “quando você estiver em Paris, talvez possa dar uma passadinha...” Não sei se passadinha é menor do que passada, nem sei se passada é menos do que “deslocar-se de seu roteiro e ir a um local que fica só a trinta e cinco quilômetros da Torre Eiffel”. Mas, seja lá o que for, tudo por um Brasil melhor!

O local era sede do fabricante de um aparelho de ultrassom projetado para inspecionar o concreto nas fundações dos viadutos em construção na Via Norte, hoje Rodovia dos Bandeirantes. Esse aparelho deu pau e caiu nas minhas mãos porque alguém me dedurou como o cara que consertava televisão. Disse que o melhor seria fazer contato com o fabricante, dai a "sugestão" para a tal passadinha. 

Lá fui eu conhecer o francês que projetou a geringonça, ainda de tecnologia analógica e com componentes especiais, isto é, ainda não validados pela prática corrente, o que sempre é um problema porque não há peças no mercado para reposição.

O francês, não lembro seu nome, com jeito muito simples, um tanto tímido, quase mudo quando não se tratava de assuntos de sua especialidade, revelou-se na hora do almoço como alguém cioso do papel de legítimo francês, defendendo sua terra natal naquilo que ele considerava uma de suas mais preciosas conquistas ao longo de sua história e de sua cultura.

Vocês, leitores espertos, já sabem do que estou falando. Não... não foi da vitória final da Guerra dos Cem Anos. Foi de algo muito mais importante, falo da obtenção do melhor Bourgogne, do mais fino Beaujolais ou mais intenso Bordeaux.  

Vocês não vão acreditar, mas naquela mesa do refeitório onde me levaram para o que eu imaginava ser um simples almoço, o acanhado francês virou um leão. Fez voltar pelo menos meia dúzia de vinhos servidos e não aprovados por suas sensíveis e experientes papilas gustativas. Afinal, meio a contragosto, aceitou uma garrafa, nem sei do que era, e me serviu. 

Ainda surpreso com aquela inesperada intervenção, o melhor que pude fazer foi experimentar o primeiro gole, fingir avaliar por alguns segundos que me pareceram séculos, pois todos os convivas me olhavam sem piedade, aguardando alguma manifestação. Era como se o Louvre estivesse a ponto de ser invadido pelo Estado Islâmico. 

Vocês não imaginam meu sofrimento, minha dúvida na busca desesperada de alguma atitude para sair daquele apavorante silêncio francês. Cheguei a pensar que aquilo fosse uma brincadeira que o Maurinho (meu chefe) ou o Maurílio (um parceiro na direção da filial de São Paulo) tinham programado com seus amigos parisienses. Mas não, tudo indicava que de Napoleão a Macron, nada existiu de mais sério.

E acabou meu tempo. Coloquei solenemente o copo na mesa, fiz a melhor cara de aprovação  e aguardei o resultado. Olha, se o Paris Saint Germain tivesse ganho a Champions League a manifestação da galera não teria sido mais efusiva.

Respirando mais aliviado, olhei bem para cada um dos que degustavam solenemente cada gole daquela bebida e saquei que, obviamente, o assunto da máquina de ultrassom não se harmonizava  com os taninos daquele vinho. A partir de então a conversa ficou nas amenidades.

Encerrada a tal “passadinha” e voltando às proximidades da Torre Eiffel, como combinado, encontrei minha mulher e perguntei como tinha sido o seu dia, ao que ela toda feliz começou a me contar:

-  Então, meu bem, como estava só, decidi almoçar no hotel mesmo, mas antes passei num mercadinho e comprei um croque monsieur, meia garrafa de vinho francês e ...

- Pode parar por aí, nem me fale em vinho francês!

Ela parou, olhou-me surpresa, mas antes que pudesse dizer algo, levantei os braços e exclamei a alto e bom som:

- Meu Deus, finalmente estamos em Paris!  

   

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

 



COISAS QUE APRENDI – E QUE FUNCIONAM




Nestas últimas décadas de vida (e não entendam últimas como “as finais”, mas como “as mais recentes”) e, por favor, não chamem a isso de “autoajuda” pois trata-se somente de coisas que aprendi e que serviram para mim; se servirem para vocês, adotem; se não, deletem!


A PRIMEIRA começa naquela máxima socrática:

Tudo o que sei é que nada sei.

Não é só porque ele disse, mas porque a experiência me mostrou que quanto mais eu me aprofundo ou me estendo em qualquer matéria, mais descubro que menos sei sobre ela, porque cada vez consigo perceber que ela é mais complexa do que eu imaginava!

Então a continuar assim, chegará o dia que não saberei nada? Ou então, em assimilando essa ideia, serei eu um sábio? Afinal tratar-se-á de uma falácia, de uma dissonância cognitiva ou, ao contrário, de uma grande arrogância?

Não sou filósofo e por isso não tenho respostas para essas questões; só sei que essa postura me poupou de muitas situações de “saia justa” ou até de consequências trágicas. Então aprendi que antes de afirmar, contestar ou empreender convém observar, especular, meditar sobre as consequências do que se pretende dizer ou fazer.


A SEGUNDA que aprendi foi:

compreender o que é a tal da “narrativa”,

palavra que embora antiga, ganhou um novo significado e muito espaço, principalmente na política dos dias de hoje. Eu adorei isso porque passei a ouvir as narrativas não como verdades absolutas, nem mesmo como opiniões pessoais, mas simplesmente como elas são, a saber, simplesmente narrativas.

O melhor exemplo é o do discurso dos advogados de defesa e de acusação ao se referirem a um mesmo réu cujo suposto crime foi avaliado e consta de um vasto relatório técnico-científico que ouviu testemunhas, pesquisou cada movimento no espaço e no tempo, pôs no microscópio o sangue espirrado, a fibra do osso quebrado, o resíduo no sapato e comparou o DNA de um fio de cabelo.

Então a ciência colocou um ponto final nas dúvidas e nosso “marciano” respirou aliviado, certo? Errado. Tudo isso são fatos que o tal “marciano” não consegue compreender porque, para esse suposto ser de um outro planeta só existe o certo e o errado, as verdades ou as mentiras. Roubou ou não roubou, matou ou não matou. Foi assim que cada um de nós também aprendeu na escola, na família, na propaganda religiosa e comercial. Portanto é compreensível que tenhamos muita dificuldade em aceitar algo tão discrepante da nossa “lógica marciana”.

Perguntar-me-ão (e lá vou eu de novo com minhas mesóclises) os leitores justificadamente curiosos: “E qual foi o aprendizado que você extraiu daí?” Responderei instantaneamente, seguro de minha convicção: Fácil, ora! Basta esquecer essa coisa que chamam de “verdade”, ou então, em outras palavras, aprender a “dormir com um barulho desses”. Pensará o leitor: “Então não posso ter a minha opinião? Claro que sim! Mas jamais se esquecendo de que, apesar de sua, é apenas uma opinião. Crie sua própria narrativa, se tiver interesse em tentar prová-la, mas saiba que isso costuma resultar em uma grande perda de tempo, nada mais além disto.



A TERCEIRA é que, se em algum projeto ou atitude assumida a coisa não funcionou ou não resultou no esperado,

aprendi a procurar onde eu falhei, mesmo se isso dependesse da participação de outros.

E sabem por que? Porque se eu gastar um mínimo que seja de energia para culpar quem errou (ou quem eu julguei ter errado), eu estarei desperdiçando meu tempo. Mas se eu achar algum erro - mesmo que pequeno - naquilo que eu fiz ou deixei de fazer, eu posso corrigir ou pelo menos procurar evitá-lo da próxima vez e lograr algum sucesso.

Essa parte ficou um tanto sem graça, mas o aprendizado nem sempre é engraçado.


A QUARTA lição, que a vida fez a gentileza de me ensinar, vem de um ditado da cultura portuguesa que reza:

“não sejas mais realista do que o rei”.

Isso significa defender uma causa com mais ênfase, esforço ou dedicação do que faria o próprio rei, ou seja, o maior interessado nela.

Há muitas histórias de chefes que dão uma determinada ordem ou estipulam algumas regras para, num momento seguinte ordenar a um subordinado que faça algo que as contrarie. Se esse subordinando questionar (ou não obedecer, porque se trata de infringir uma regra que o próprio chefe criou) pode se preparar para uma encrenca totalmente desnecessária.

E o que fazer então? Só posso sugerir algo como isto: Olhar com firmeza para o chefe durante três segundos e, em não havendo outra manifestação por parte dele, comentar alegremente:

OK boss, você manda! 

E se achar adequado no momento, com aquele risinho maroto de quem entendeu tudo.


A QUINTA trata de uma palavra em geral muito mal compreendida:

a “ACEITAÇÃO”.

Eu começaria por esclarecer que aceitação é muito de diferente de conformismo.

Você pode não gostar ou não ter desejado que aquilo estivesse ocorrendo, mas se quiser fazer qualquer coisa a respeito, a primeira etapa é aceitar.

Aceitar que existe, aceitar que incomoda, aceitar que não gosta. Se for o caso, aguardar um momento mais favorável, ou preparar-se melhor para o combate. Tem um outro termo que era quase desconhecido e que ganhou enorme espaço hoje em dia: “resiliência”. Trata-se de uma propriedade de quem aceita um golpe e se recupera rapidamente, ou seja, a velha expressão “verga, mas não quebra”. Como num jogo no qual você aceita perder momentaneamente para não se desgastar antes da hora, ou perder no primeiro instante para buscar a vitória mais adiante. Lembre-se de outro velho ditado que ensina “ri melhor quem ri por último”.

E isso também tem outro nome: chama-se Paciência, qualidade que alguém já definiu como “A virtude dos deuses”, que embora muito longe de ser nosso caso, pode ser um ótimo exercício.


A SEXTA lição deixei mais para o fim porque esta lista não segue a lógica da prioridade (aliás, não segue lógica alguma) mas deriva da minha enorme dificuldade de lidar com ela. Refiro-me ao

Imediatismo

Acreditem, é uma luta diária, incessante e com resultados aquém do desejável. A pressa é uma m..., acreditem. Atravessem correndo, uma avenida com seis faixas de tráfego e, se sobreviverem, contem-me... E como acontecem situações na vida em que nos vemos exatamente confirmando essa metáfora!

A SÉTIMA é sobre ser feliz.

Tenho até dúvidas sobre como abordar este tópico porque sobre ele há tantas falas, vídeos, imagens e “memes” correndo pelas redes sociais e me deixam receoso de estar “chovendo no molhado”; então “saio pela tangente” e digo:

Seja feliz do jeito que você achar melhor.

Mas é bom achar logo esse jeito, e que seja um jeito realmente bom, viu?



Aí foram são as principais. Depois conto mais algumas outras que também me ajudaram bastante e, para quem gosta das velhas regrinhas, aí vão estas sete primeiras:

1. TUDO QUE SEI É QUE NADA SEI.

2. SE NÃO DEU CERTO, VAMOS DESCOBRIR ONDE ERRAMOS.

3. NÃO HÁ VERDADES SIMPLES, QUASE TUDO É UMA NARRATIVA.

4. NÃO SEJAMOS MAIS REALISTAS DO QUE O REI.

5. PRATIQUEMOS A ACEITAÇÃO.

6. CONTROLEMOS A PRESSA.

7. SEJAMOS FELIZES - ISSO DEPENDE SÓ DE NÓS.


quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

 O VOO DE DOMINGO AO MEIO-DIA

 

Eu acabara de me casar, tinha então 24 anos quando decidi participar de uma atividade extremamente importante, naquela época, que era o radioamadorismo.  Importante porque à ocasião ainda havia algumas Capitais no país que, em tempo chuvoso, não dispunham sequer de estradas para acesso a uma cidade com mais recursos, fosse necessária uma radiografia ou simplesmente a compra de um remédio. O que dizer então de cidades do Interior com muito menos possibilidades de atendimento e salvação de um doente ou um acidentado mais grave.

Assim foi o caso de uma menina mordida por um cão não vacinado e acometido, comprovadamente, da Raiva, uma zoonose que, sem tratamento urgente e adequado, quase sempre é fatal.  Residia essa criança em Toledo, interior do Paraná e foi numa sexta-feira de feriado nacional prolongado que esse episódio teve lugar.  

Foi o pai dessa menina, pessoa simples, mas de mente clara, lembrou-se de um conhecido que se dizia radioamador, e foi a ele que recorreu em urgente e humano desespero. 

Naquele fim de tarde eu estava em casa com minha mulher, grávida do nosso primeiro filho, e com meu receptor ligado, quando ouvi, em meio a forte ruído na faixa dos 40 metros, o clássico e insistente CQ-40...CQ-40...CQ-40. Não sei porque, mas aquela voz me soava mais como uma súplica do que de um simples passatempo naquele hobby que eu tanto apreciava.

Atendi, e apesar da dificuldade diante de uma propagação deficiente, própria daquele horário, percebi que a súplica não era só coisa de minha imaginação; ao contrário, falava ele da cidade de Toledo, oeste do Paraná, e clamava por ajuda. Perguntou se eu estava disposto a encarar uma tarefa complicada tendo em vista o mau tempo e a urgência que se fazia necessária.

Olhei para minha mulher que ouvia aquela conversa cifrada onde esposa é “cristal”, automóvel é “pé-de-borracha”, endereço é “QTH” e estar de acordo é “QSL”. Ela também mandou sua cifra através de mero aceno de cabeça que qualquer um entenderia como “SIM”. 

A partir daquele exato momento todos os pensamentos e ações se concentravam em uma única missão: salvar uma vida humana através da aplicação de uma necessária medicação até, no máximo, 48 horas após a infecção.

Eu só vim a saber muito depois que, a partir do momento em que o paciente tenha desenvolvido os sintomas da raiva, não há mais tratamento eficaz – a morte sobrevém inevitavelmente. Mas há vacinas que são altamente eficazes se administradas em tempo hábil.   

O que de início parecia quase impossível tornou-se mais viável com a informação que o colega de Toledo nos passou: aos domingos, cerca de meio-dia, pousava no pequeno aeroporto de Toledo uma aeronave da empresa SADIA (que se transformaria mais tarde em TRANSBRASIL) e que atendia ao transporte de carnes de frango e de suínos produzidas na cidade e redondezas.

Minha missão agora seria conseguir a tal vacina no Instituto Pasteur e colocá-la nas mãos do comandante daquele voo, que decolaria de Congonhas (São Paulo) às 7h. da manhã de domingo. 

Argumentos para desistir não faltavam, mas algo me impedia de abandonar aquele homem e assim pensando decidimos encarar a tarefa.  A realidade de encontrar alguém capaz de me fornecer um produto, num sábado de feriado prolongado, numa instituição que localizei na Avenida Paulista (obviamente fechada) não foi das mais esperançosas. Nenhuma farmácia ou outro varejo dispunha dessas vacinas.

Não será difícil a qualquer pessoa imaginar as artimanhas que, naquele ano de 1964, tivemos que inventar para achar um médico daquele Instituto, capaz de se deslocar de seu descanso, abrir o prédio, coletar a vacina, aceitar a falta dos dados necessários sobre o paciente e enfim, pôr em minhas mãos um pequeno pacote cujo valor minha mulher e eu sequer conseguíamos imaginar.   

O resto foi até mais simples apesar das formalidades burocráticas de um aeroporto e o fazer contato com a tripulação, pois não eram permitidos despachos naquela linha aérea. Mas, incrivelmente, nessas horas, a boa intenção parece conspirar para que se encontre alguém que demonstre algum senso de humanidade para nos ajudar.

Domingo ao meio-dia o comandante daquele voo pousou suavemente em Toledo e pôs nas mãos do meu desconhecido amigo e colega radioamador a vacina que iria salvar uma vida.

Dias depois, uma linda carta chegou a nossas mãos - era do pai daquela menina. Não era mais necessária, já estávamos absoluta e completamente pagos. 

 

(Este texto inclui sugestões e uma competente revisão de meu amigo Celso Cretella)

sábado, 3 de outubro de 2020

 

MINHA HISTÓRIA - MINHA VIDA


PARTE1 - PRÓLOGO

Já se passaram quase sessenta anos da época em que eu, perto de terminar meu curso universitário, ansiava por conseguir um emprego e cuidar da minha vida, afinal já era hora. A ideia era iniciar uma carreira longa, tranquila e segura na engenharia, mas naquele início de campeonato eu ainda não tinha certeza de coisa alguma. 

Vocês sabem que engenheiros, como eu, que dependem da matemática para fazer seus trabalhos, acostumaram-se a apostar na certeza de dois algarismos significativos e, se absolutamente necessário, arriscar um terceiro.

Assim era que fazíamos cálculos até de grandes prédios (e quase nenhum caía...), confiando num pequeno dispositivo de plástico, sem chip, visor ou bateria - a famosa Régua de Cálculo. 

A minha era aquela que ganhei de meu sogro, também engenheiro, uma nas quais se podia confiar em leitura segura de um terceiro dígito, tinha trinta centímetros e era feita com um tal bambu chinês que jamais encolhia ou espichava. Tudo ao contrário dos números que encolhem ou espicham nessa época de pandemia made in China.

Aliás, só de escrever "bambu", lembrei-me de que hoje não mais precisamos colocar o velho e bom acento agudo na letra “u”, caso contrário, para quem está se iniciando numa nova carreira de escritor, isso seria um erro grave

Grave também seria confundir o COVID19 com a SRAG, a tal Síndrome Respiratória Aguda Grave. E para quem, como eu, também quer prosseguir no estudo da música, fazendo o que pode com seu piano, surge outro problema linguístico: será que alguma coisa pode ser aguda e grave ao mesmo tempo? 

Bem, para quem estiver num ônibus lotado e sentir aquela dorzinha de barriga, e se a dorzinha evoluir para uma cólica intestinal aguda, essa pessoa estará definitivamente com um problema grave. Entretanto, no mundo dos sons a resposta é não, porque esses dois adjetivos são contraditórios: os graves se referem aos sons de frequência mais baixa, onde fica o popularmente chamado som “grosso”, ao contrário do som “fino” que está na região dos agudos

Muita calma, querido leitor, essa miscelânea de assuntos abordados até este ponto está acontecendo tão somente para deixar claro os três seguintes fatos: primeiro, que estamos em uma pandemia, segundo que me graduei em engenharia, terceiro que sou músico amador e candidato a escritor, ok?

A bem da verdade, devo declarar também já ter vendido e instalado coifas de cozinha, montado sites na internet, consertado rádio vitrolas e TVs de tubo. Também já ensinei a muitos diretores e gerentes de empresas as técnicas de Gerenciamento Eficaz, isso sem dizer que eu quase virei psicoterapeuta - e ai de mim se não fosse o “quase”!

Fiquem tranquilos, pois essa enrolação acaba de acabar. Chegou a hora de dizer a vocês que a história vai começar em São Paulo, no Curso Anglo Latino, lá pelo final dos anos cinquenta, suprimindo aqui “do século passado” porque esse terrível e desnecessário complemento só me traz pensamentos funestos. 


PARTE 2 - NO CURSINHO


Éramos mais de cem estudantes abarrotando a sala do genial professor Abram Bloch, no momento em que se juntou a nossa, uma outra turma que ia tentar vestibular em uma Faculdade de Arquitetura.

Foi quando percebi à entrada da sala, um espécime humano do gênero feminino, ao mesmo tempo que, não sei se obra de Deus ou do outro lá de baixo, apareceu a meu lado uma carteira vazia. De dinheiro não! É que naquele tempo, não sei se hoje ainda, chamavam-se carteiras as cadeiras que acomodavam alunos com seus livros e cadernos nas salas de aulas (sim, presenciais, quase esqueço que agora é preciso especificar isso também!). Digo que surgiu foi uma carteira vaga a meu lado!

O fato é que os desígnios planetários naquele epicentro de intrépidos pretendentes a calouros de uma faculdade me fizeram sinalizar discretamente a tal carteira vaga àquela, cujo olhar perscrutava (bonita essa palavra, hein?) atentamente o tenso ambiente da sala de aulas com seu famoso professor à lousa (será que preciso explicar também o que era lousa?).

Vocês não fazem a menor ideia de como um gesto tão simples e inocente (peço perdão a quem se incomodou com esse último adjetivo) possa provocar consequências inimagináveis nas vidas de tantos outros espécimes humanos, vivos ou ainda por viver nesse curioso e inexplicável universo. Não teve jeito. Atenta e com a visão periférica da qual poucos desfrutam, ela viu! E ponto final - entendam aqui "final" com o significado exato de irredutível, derradeiro, definitivo.

Para um simples candidato a engenheiro, visto como um ser desagradável que pretende encarar um mundo hipercomplexo com irritante objetividade e selvagem pragmatismo, essa segunda parte do texto já deu o que tinha que dar. 

Então que se prossiga essa... droga de história, ou, para  ser mais sincero,  “just tell us this fucking story!”


PARTE 3 - FLASHBACK


Agora me compreendam por favor, não é pelo prazer mórbido de criar suspense, mas para prosseguir esta história é preciso fazer um resumo do que foi minha vida até aquela fatídica aula do prof. Bloch.

Nasci em São Paulo, no bairro das Perdizes, primeiro filho do casal Olga e Guilherme, ele dentista ela farmacêutica, os quais se conheceram na USP, ainda plantada no bairro do Bom Retiro. De personalidade, digamos, rigorosa, ela, filha de italianos, já era assistente de um professor de microbiologia e acabou dando aulas práticas também para a turma da odontologia (já imaginaram a dureza da peça, né?). 

Ele, mais novo um ano, depois que se casaram, brincava ao chamá-la de Mussolini, mas era só brincadeira, claro... Nada a ver com a vida real, pelo menos até o dia em que eu fui ver um psicoterapeuta e tive que dar conta de fazer um retrospecto daqueles que, bem, vocês sabem. O que? Não me venham dizer que nunca tiveram de bater um papinho com um desses - e nesse caso é bom irem pensando nisso. 

Muito cedo fui matriculado no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Longe de ser como esses chinesinhos modernos que já nascem subindo em pau de sebo, aos seis anos tocava a Pour Elise na versão simplificada (mas ainda do velho Beethoven), e aos sete toquei o Hino Nacional na festa de fim de ano. Aos catorze concluí o curso, muito contra a vontade, porque o que eu queria mesmo era aprender a tocar jazz (como adorava aquelas harmonias diferentes do Stan Kenton), só não sabia como, nem onde, nem com quem. 

Não me passava pela cabeça pedir apoio paterno, muito menos materno, para realização dessa heresia. Na verdade, e aqui muito entre nós, passava sim, e muito, pela minha cabeça, o que faltava era coragem para enfrentar o "Duce" (para quem não teve mãe italiana eu explico, é um título, tipo chefe, usado para se referir a ditadores como o citado ali atrás no apelido dela, e a pronúncia é Dútchi). 

No saudoso e conceituado Instituto de Educação Caetano de Campos fiz primário e ginasial. O científico foi no Mackenzie, porque, acho eu, algumas amizades de classe social acima da nossa fizeram a cabeça dos velhos, já de olhos na faculdade.

Eu sempre pensei que ia fazer a Poli, mas acabei vestindo mesmo o blusão do Popeye, de certa forma isso foi muito bom, porque lá na Engenharia conheci figuras queridas do hoje carinhosamente chamado Mack62. Aliás, por obra da pandemia, alguns desses atuais anciãos costumam se encontrar em reuniões virtuais que acontecem em alguns dias úteis (?) da semana.  Moderninhos, nós? Nada disso, pura culpa do Covid19.

Devo avisar aos jovens inquietos e futuros leitores que podem não saber muito bem o que foi a já tão falada pandemia que assolou o mundo neste meu atual 2020. Deter-me-ei sobre o assunto mais adiante, sem nenhuma vergonha dessa mesóclise.

Prosseguindo a história, devo dizer que eu queria mesmo era ir para o ITA, porque já adorava eletrônica, tinha feito um curso por correspondência de rádio e televisão, já tinha desmontado por completo e consertado (juro) nossa primeira TV, uma Invictus de 21 polegadas fabricada no Brasil porque o governo do militar Eurico Gaspar Dutra não gostava das importações.

Aproveito para lembrar que começou daí nosso atraso tecnológico, e que não paramos até hoje de ter de nos orgulhar tão somente com o faturamento recorde do agronegócio, além, é claro, do terrível lugar comum sobre as maravilhas do nosso país: o futebol, o carnaval e Cristo Redentor do Corcovado – e Ele que nos ajude!  

Sobre a escolha do curso e da escola, digo que o ITA, para o meu amado odontólogo e amada farmacêutica, parecia estar em outro continente, não sendo possível sequer sonhar com uma permissão para frequentar uma faculdade no tão longínquo São José dos Campos! 

Diante da impossibilidade do ITA, tive que me virar com as apostilas do Instituto Universal Brasileiro, aquele lá da rua Vitória (ou era Aurora?), e até faturar um bom dinheirinho quando, já na faculdade, montava na minha Vespa, levando a malinha de ferramentas com válvulas, resistores e capacitores, para atender clientes que não dispensavam o Repórter Esso na tela do indiozinho, a logomarca da velha TV Tupi de São Paulo.

Opa, atravessei o cronograma, nem sequer falei ainda do vestibular! O cursinho foi maravilhoso, eu, meu amigo Goloubeff, mais os colegas Juvenal, Berry e Henroz ficamos no top five do vestibular da Engenharia do Mackenzie naquele ano de 1958.

Optei pela área da engenharia civil (obrigatório) e elétrica (com uma torcida de narizes), depois de fazer aquele Anglo Latino com as aulas maravilhosas do professor Bloch, onde justamente aconteceu o episódio da carteira vazia e... bem, vocês já sabem disso. 


PARTE 4 - ERA TUDO OU NADA


Mas não ficou por aí. Imagine que a donzela capturada naquela inacreditável cena da carteira vaga não demorou para que, nem bem soado o sinal de término da aula, me mandasse essa na lata: “Você sabe que fizemos o terceiro ano do primário na mesma sala”? Gelei. 

Se de fato fosse, como poderia eu dizer que não me lembrava? E se fosse só uma artimanha para iniciar conversa, duvidar da veracidade da informação não seria um enorme risco? Afinal garotas nessa idade, mudam muito, o cabelo, o corpo, sei lá! Mas era minha vez de colocar as cartas na mesa. 

Eu sabia, não sei porque, mas sabia que tinha que pensar e agir muito rápido. A sensação era de um tudo ou nada, como se a terra fosse parar de girar se eu vacilasse. Não era como uma questão de matemática no vestibular que se avizinhava, a coisa tinha dimensões cibernéticas, astrofísicas, quânticas, sei lá o que, mas tinha. 

Tentando mostrar segurança, olhei firmemente naqueles olhos dos quais, qualquer que fosse o resultado daquele jogo, jamais deles me esqueceria. Franzindo o sobrolho e procurando parecer buscar na memória uma fisionomia antiga, disse, quase sussurrando, algo como:  

- Você não é a... “

Ai valeu-me sorte, porque ela, também um pouco nervosa, foi quem vacilou, e soltou a carta:

- Sonia?

- Claro! Instantaneamente completei.

E ela fixou um olhar que me fez gelar de novo. Que mania a minha de responder depressa sem dar um tempinho para organizar meus apavorados neurônios! Será que foi um teste e ela se chama Maria Helena? 

Mas não, logo veio um sorriso que me aqueceu de alto a baixo, até um pouco demais.
Ufa, passei nessa primeira prova, mas creiam, doravante as coisas não seriam tão fáceis assim.


O NAMORO

Sonia também fez o vestibular e entrou na Arquitetura do Mackenzie.

Nessa fase não tem muita novidade para contar, é o de sempre. O primeiro baile, que foi o da sua formatura no colegial, depois o primeiro cinema e depois o primeiro cinema (não errei não, o primeiro não valeu porque obrigaram-na a ir em companhia da irmã mais nova, coitada). Isso se chamava segurar vela. Assistimos um filme do qual jamais consegui me lembrar qual era. 

Depois as primeiras caminhadas com mãozinhas juntas, o primeiro beijo (meeeu Deus!), namorar pelas praças nos loongos trajetos de ida ou de volta das aulas, e por aí vai.


PARTE 5-  NOIVADO E CASAMENTO


Não me lembro se aconteceu algum ritual de noivado, só me recordo que um dia, jantando em casa dos pais dela, encarei o sogro. Muito sem jeito, disse a ele que queria deixar claro que estávamos namorando e que minhas intenções eram as melhores. Ao que ele, também meio sem jeito, brincou, como era de seu feitio, fazendo alguma piada da qual não me lembro. Acho que eu nem ouvi, ou nem entendi o humor da pilhéria, mas, pela reação da sogra e da cunhada presentes, não tive dúvida de que se tratava quase certamente da esperada permissão. 

Na verdade, nunca entendi exatamente o que a expressão “melhores intenções” significava, mas no caso em tela, ou em tê-la, (de novo essa mania, mil perdões, leitor) significou e muito. E isso tem a ver com a Vespa, lembram dela?  Sonia gostava do prático e econômico embora incômodo veículo, mas seu pai não suportava ver sua virtuosa filha na garupa de uma motoneta. Não tenho a menor lembrança do que eu disse naquele momento, só sei que uma cláusula pétrea naquele desajeitado contrato verbal acabara de ser flexibilizada – a liberação da garupa. 

Até hoje não sei quais foram as tratativas de bastidor para que isso acontecesse de forma tão rápida e simples, nem nunca perguntei. Dei o caso por encerrado, curtindo silenciosamente a vitória.

Mas eu não posso omitir o fato de que, dias antes dessa conquista, houve um episódio curioso, e talvez tenha sido ele mais importante do que as supostas tratativas de bastidor. Um dos gêmeos, irmãos dela de cinco anos, teve um pequeno acidente em casa, nada grave, mas a mãe e as comadres presentes achavam que seria necessário visitar uma UBS, ou sei lá como se chamavam os pronto socorros da época, talvez pronto-socorro mesmo. E ainda, certamente, com hífen.

Naquele momento, no qual uma emergência se apresentava, qual foi o veículo que portentosamente se exibia em frente à casa? Hahá... claro, a Vespa. E não de outra forma o peralta (depois da era Faustão, se diz pentelho) foi levado ao pronto socorro, agora já sem hífen, não exatamente na garupa, mas à frente, no estribo, com seu galinho na cabeça.

Examinado e tratado, o geminho foi liberado e voltou para casa. Na Vespa, é claro. Ele, feliz com a aventura e por ter participado de um episódio, para ele inédito, que, ao final, trouxe o alívio e a felicidade geral da família e da vizinhança presente. 

Para os que não viveram aquela época, devo dizer que o casamento ainda era um divisor de águas na vida dos noivos, e não só de águas, se é que me entendem. Pois bem, a pílula foi lançada nos Estados Unidos em 1960, só chegou à Alemanha um ano depois, portanto muito longe ainda de nossas farmácias de bairro ou mesmo das drogarias chiques do centro. Falando nelas, me lembro de duas: a Drogadada e a Ao Veado de Ouro.  

O CASAMENTO

A cerimônia foi simplesmente burocrática no civil. O religioso foi na Igreja dos dominicanos, no alto das Perdizes, no dia 10 de outubro. A festa que era para ser simples, só com presença dos familiares e alguns amigos, acabou se complicando um pouco. 

Meu pai era deputado estadual pelo antigo Partido Democrata Cristão, numa época convulsionada depois da renúncia de Jânio Quadros (1961). João Goulart, um vice de esquerda, foi quem assumiu o poder. O resultado foi a famosa “redentora” de 64, quando o novo presidente foi destituído e todos os partidos foram calados.

Por força de sua posição, mesmo sem o poder que o cargo lhe conferia, o velho acabou trazendo muito mais gente para a comemoração do que o esperado pela minha mãe, a organizadora do evento. Não preciso falar da saia justa que tiveram de vestir esses dois protagonistas do episódio.

Nós, os noivos, procuramos ficar fora disso, estávamos numa fase de dúvidas políticas, de discussão de valores sociais, econômicos e religiosos. Acabáramos de nos formar no Mackenzie, que vivia ainda o ambiente de uma longa e bem-sucedida greve, afinal havíamos posto para fora da Escola de Engenharia dez professores totalmente ineptos, lá colocados por nepotismo de reitor e omissão da entidade chamada mantenedora.

A lua de mel foi uma semana em Águas de Lindoia, num hotel que tinha uma vista maravilhosa da janela do quarto - nunca a esqueceremos. Marcelo nasceu no dia dez de julho, exatos nove meses depois do dez de outubro. A alegria de ter um filho maravilhoso foi enorme, e a cereja do bolo foi a incrível precisão da data. Sim, espertinhos, ninguém marcou data, foi parto normal, viram?     

O SOGRO

Tenho de confessar que a figura daquele que, agora formalmente, veio a se tornar meu sogro, sempre me fascinou. Ele era uma dessas pessoas que perdem um emprego ou um amigo, mas jamais uma piada. 

Além de criar ou trazer de suas leituras expressões do tipo “mais sujo que guardanapo de tropeiro”, era mestre em dar apelidos definitivos, como Biafra (para um parente magro de dar dó) e Bujão de Gás (para um cliente baixinho, troncudo e malcheiroso). Bordões tinha muitos, um para cada situação - quando dava um presente ou comentava sobre um presente dado ou recebido dizia, “Coisa fina...” e nunca se sabia se isso era um elogio ou uma ironia. 


PARTE  06 - A CARREIRA PROFISSIONAL


PRIMEIRO ATO

Comecei numa empresa que parecia ter tudo aquilo que eu amava e queria, sinalização ferroviária era basicamente um sistema elétrico, eletromagnético, eletrônico e eletromecânico de controle de trens. Além disso o país precisava urgentemente de mais e melhores ferrovias e era o que deveria acontecer. Melhor impossível. Mas, a médio prazo, o pior possível: as ferrovias brasileiras começaram a ser sucateadas.

O contrato que a CBS (Cia Brasileira de Sinalização) tinha com o cliente prosperava, apesar dos problemas que enfrentamos. Logo de início, o material japonês enviado pelo consórcio vencedor da concorrência para sinalização da Estrada de Ferro Sorocabana (Barra Funda-Ourinhos), especificamente os relés de operação e segurança, apresentaram falhas logo nos primeiros testes, o que nos obrigou montar um laboratório para os ajustes que não haviam sido concluídos durante sua fabricação, alegando-se “para não perder prazos”. 

Para mim, como funcionário da empresa, foi maravilhoso, apanhei e aprendi muito com isso e, em termos de crescimento profissional, só tive benefícios. 

No ano seguinte, nosso amigo Otávio Lopes Filho, que estava enveredando pelo campo das obras públicas de construção civil, conseguiu vencer uma primeira concorrência para construção de pontes em estradas de rodagem no estado de São Paulo. Bem, já que as ferrovias começavam a parar, em decorrência do forte lobby dos pneus, vamos fazer pontes nas rodovias, porque não? 

Convidado, animado, pulei decidido para esse novo barco, o qual, dias após, começou a fazer água, mais que isso, não conseguiu sequer se desgarrar do porto porque, com o já citado e famoso evento de abril de 64, o novo governador interino do estado de São Paulo decretou o cancelamento total dos contratos - e por muita sorte ainda nem tínhamos comprado o cimento!

Com a maravilhosa exceção do nascimento do Sérgio, o ano de 65 não podia ser pior. A pilha dos antigos “Picaretas”, o jornal do centro acadêmico, crítico aos fardados que dominavam o país, estava guardado no sótão e nós decidimos queimá-la por medo de uma investigação política. E nossa agenda de obras ia de mal a pior. O melhor que conseguimos, graças ao suporte de meu irmão Geraldo, foi a construção de um galpão industrial para a primeira fábrica de cerveja em latas do país: a Skol de Rio Claro.

Do ponto de vista financeiro foram sete anos de horrores, até um dia em que, do nada, toca um telefone e uma nova luz surge no horizonte, na forma de uma nova estrada, com aqueles dois longos, sólidos e conhecidos trilhos do saudoso mundo dos trens. 

Espere um pouco, dirão vocês leitores atentos, então as ferrovias não estão sendo sucateadas? Não na Cia. Vale do Rio Doce, que tinha, na eficiência de seus enormes trens, a principal ferramenta para exportação do minério de ferro, item fundamental para assegurar importantes valores a nosso PIB. 

SEGUNDO ATO   

Quem disser qualquer coisa sobre esses segundos sete anos, tanto de vida pessoal como profissional, que não seja algo como maravilhoso ou perfeito, estará mentido. Chegar, eu e meus dois novos sócios, numa cidade onde se come a melhor muqueca de badejo do mundo, morar na praia, não na rua da praia, na praia mesmo, fazer o que ama, aprender muito mais, criar filhos em ambiente totalmente saudável e descontraído, montar e liderar uma equipe técnica da mais alta competência, emitir mensalmente faturas de valores até então impensáveis, aqui não tem como evitar o surrado “não tem preço”.

Só para dar um exemplo, somente um dos itens de nosso cronograma da montagem do sistema integrado de trafego ferroviário com controle automático de trens (isso sem contar o gerenciamento das obras de duplicação da linha férrea do Porto de Tubarão a Itabira, que veio de lambuja), era o lançamento subterrâneo de um complexo cabo de comunicações nos quinhentos quilômetros de via, passando por rios, vales, túneis, rochas e alagados. Um grandioso abacaxi que os primeiros vencedores da concorrência não conseguiram descascar e que nós, três malucos que assinaram o novo contrato, encaramos numa boa.    

Na segunda parte desse maravilhoso período, já morávamos no Rio de Janeiro, mas naquele Rio cantado por Vinicius, “de onde se via da janela, o Corcovado, o Redentor, que lindo”.

Tantas coisas boas ocorreram nesses sete anos que diversas delas serão objeto de crônicas que pretendo logo escrever neste blog.

TERCEIRO ATO

Acho que eu não merecia continuar morando no paraíso e por alguma razão o chefão lá de cima achou que eu estava abusando e me obrigou a voltar para o purgatório. Mudamos de volta para sampa, filhos adolescentes, terapia e total mudança de profissão. Fui meio psicólogo, mesmo sem ter feito Psicologia, meio consultor de RH, mesmo sem ter frequentado sequer um cursinho de Administração. 

Nesse período quem brilhou foi Sonia que, como arquiteta, continuava parte do tempo na prancheta e parte nas obras, eu com receitas minguadas de meio-profissional e ela gerenciando orçamentos nada econômicos de obras nos pujantes condomínios do Alphaville. 

Disse "prancheta", mas isso só valeu no início do período, porque assim que o computador lhe chegou às mãos, a prancheta foi para o lixo e seu progresso foi imenso quando mergulhou no CAD (Computer Aided Design) ainda em suas primeiras versões, coisa que pouquíssimos profissionais de sua geração fizeram.

Mas eu também não posso me queixar dos contatos que tive com CEOs de destaque da época e de ter podido ajudar alguns deles prosperar no mundo dos negócios com meus seminários sobre motivação, liderança, administração de conflitos e temas afins. 

Na virada do milênio publiquei o livro “Acorde para o Sucesso” fruto da experiência em meus trabalhos de consultoria e do conhecimento que ainda guardava dos estudos de piano lá na infância. Sobre esse tema vivi ótimos momentos nos trabalhos que realizei junto com meus dois filhos, os quais se dedicaram ao mundo da música. Marcelo é doutor pela Unicamp e Sérgio, mestre em composição e regência pela Patterson University, EUA, faleceu em 2015, vencido por um câncer cerebral.

Antes disso, com falecimento de meus pais e de minha sogra, tivemos acesso a alguns bens que tornaram possível construir novos imóveis comerciais e garantir uma aposentadoria mais ou menos tranquila.  


PARTE  07- MUDANÇA DE HÁBITO


Ao contrário do que acontece no belo filme das irmãs cantoras, “hábito” aqui não se refere a um tipo de vestimenta, mas, figurativamente, a uma estilo de vida, num ambiente novo, longe da poluição e do trânsito, uma mudança do urbano para o rural.  

Aquele retorno ao purgatório talvez tenha sido injusto, mas quem sou eu para discutir com o chefão. Mesmo porque, talvez, mercê daquele último estágio na dureza, tenha eu finalmente merecido um prêmio. E a mudança, dessa vez, chegou através de uma criatura da espécie canina. Explico.

Minha filha, dos três a mais nova, deu-nos uma cadelinha poodle. Aliás quando ela for ler esse texto (refiro-me a minha filha, é claro), não sei se chegará a esse ponto porque eu já falei de meus outros dois filhos em tópicos anteriores e, se ela ainda estiver por aqui, deve estar verde de ciúmes.

Calma Sizus, você vai ganhar mais espaço do que eles. Silvia é uma super professora de Pilates. Na verdade, ela “A” professora dos professores de Pilates, com especialização na Espanha, presença em congressos internacionais, atua aqui no país e em Portugal, compõe a cúpula daqueles que decidem o rumo do Pilates no Brasil. Nesse momento de pandemia faz tudo isso de forma virtual, com as lives, o zoom e outros recursos tecnológicos em alta depois da invasão do Covid19.

Voltando à cadelinha (agora sim, me refiro à poodle), fato é que morávamos em apartamento e eu, que adoro cachorros, não me conformava em vê-los vivendo em espaços fechados. Sempre fiz questão de ter lugares abertos para seu total desfrute (seu não, leitor, dos cães, é claro! Que língua complicada essa nossa!).

Posto isso, enviei à família uma medida provisória no sentido de que deveríamos nos mudar para um sitio, estabelecendo os termos de referência para a aquisição de um novo local de moradia - para nós e para a poodle. Sonia acrescentou alguns itens no documento, o que tornou a procura um pouco mais penosa.

No início do ano 2000, após revirar municípios num raio de até 150 km da capital (um dos itens dos termos de referência), achamos o lugar perfeito e, acreditem, bem mais palatável, economicamente falando, do que todos os outros pesquisados. Com malabarismo financeiro e impecável gerenciamento de caixa, adquirimos o sitio, que, em homenagem ao mecanismo de pesquisa virtual disponível antes do reinado do Google, chamamos de Altavista. 

Sonia fazia questão de atribuir ao local a categoria de “Rancho” porque, por experiência em sua família de origem, não gostava de “Sitio”. Mesmo sem apresentar todas as características de um verdadeiro rancho, o lugar foi adotado com o longo nome de “Rancho Altavista Tudo Junto”. 

Pensamos assim para que nossos cadastros no Sindicato Rural, na Vida Agropecuária, na Secretaria de Cultura, no cabeleireiro Ticena (quase ia me esquecendo desse) e outros CNPJs do município de Extrema, MG, aparecessem distorcidos como Rancho Alta Vista. Não sei porque as pessoas têm um hábito quase atávico de separar o “Alta” do “Vista”, e o Word, que não tem senso de humor, continua me aborrecendo com seus algorítmicos grifos azuis e tremelicados. Então desistimos e ficou só RANCHO ALTAVISTA mesmo, que acabou sendo conhecido pelo apelido de RAV.

É daqui do Rancho Altavista, ou RAV para os íntimos, aliás já bem conhecido daqueles velhotes do Mack62, que vos escrevo essas linhas, correndo risco de ser, com toda a  razão, criticado pelo uso incorreto do pronome na segunda do plural. 


PARTE 8 - A APOSENTADORIA

Se vocês pensam que eu vesti o pijama e passei a viver com a grana que o governo arrancou de minhas receitas brutas, liquefazendo-as para me devolver do jeito dele, não foi o que aconteceu.

Nunca acreditei nessas poupanças feitas pelos outros em meu nome. Aliás minto, uma vez eu caí nessa esparrela. Recolhi não sei quanto, durante não sei quanto tempo, para o Montepio da Família Militar e o recolhido ficou assim mesmo, recolhido até hoje, não sei quanto nem com quem ficou a grana que não era pouca! Foi a vingança dos fardados, aqueles que eu tanto critiquei lá atrás no Picareta, e que hoje em dia, politicamente, até entendo e valorizo sua postura. 

Também não foi com venda de vacas, cabritos, queijos, frutas ou verduras que garantimos nossa receita, porque sítios foram feitos só para dar despesa, acreditem.    

Não posso fechar esse tópico sem contar que, ano passado, eu e Sonia fomos ao INSS para conhecer seu novo prédio aqui em Extrema e, graças a essa curiosidade profissional, descobrimos que tínhamos, sim, direito a benefícios relativos a “aposentadoria por idade”, coisa que tinha sido negada em nossas últimas buscas. Então, desde janeiro deste 2020 começamos a receber mensalmente um dinheirinho e ficamos muito felizes, não tanto pelo valor, mas pela novidade.  

A MÚSICA 

O grande Tom Jobim, compositor do qual sou fan incondicional, gostava de um trocadilho e sempre o usava em entrevistas que dava para as rádios e Tvs. Dizia ele, “meu problema é de piano”, falando junto o “edipiano”. Mãe poderosa, cuidava mas exigia, vocês já podem imaginar.

Meu problema também sempre foi de piano, desde os cinco anos, já falei lá atrás. Ocorre que a partir dos quarenta e cinco recomecei a tocar, até comprei um teclado cheio de botões. Tocava muito mal para o meu gosto, mas não me preocupava com isso. 

Quando mudamos em definitivo para o sítio, digo Rancho, eu já com setenta, fiquei mais exigente comigo mesmo. Convenci o Antonio Barker, ótimo pianista do grupo de música dos meus filhos, a vir uma vez por mês a me dar uma aula longa. Melhorei a postura no instrumento, a manutenção dos ritmos do jazz, da bossa nova, aprendi a ler as cifras e outras manhas para fazer arranjos mais interessantes e executá-los melhor. Até comprei um Yamaha, piano digital, mais simples e muito melhor em termos de sonoridade.

Aqui em Extrema a prefeitura estimula os artistas e eu passei a fazer parte do coral, acompanhar vocalistas e acabei formando uma dupla Piano e Voz com uma excelente cantora. Adriana e eu temos participado da programação artística da cidade, que, agora, com a pandemia, está produzindo “lives” ao vivo (com perdão do pleonasmo) e também “lives” gravadas (com perdão da inconsistência). Esse é o projeto@extremadendicasa, e nosso prefeito João Batista e sua ótima equipe não param de trabalhar. 

Bora reelege-los pessoal! 


FIM DA HISTÓRIA


Como prometi, na ocasião oportuna vou descrever o que foi a pandemia de 2020 em uma postagem especial. Pretendo também escrever e postar nesse blog crônicas sobre episódios interessantes ou curiosos que vivenciei durante essa minha jornada. 

Até mais.