MINHA HISTÓRIA - MINHA VIDA
PARTE1 - PRÓLOGO
Já se passaram quase sessenta anos da época em que eu, perto de terminar meu curso universitário, ansiava por conseguir um emprego e cuidar da minha vida, afinal já era hora. A ideia era iniciar uma carreira longa, tranquila e segura na engenharia, mas naquele início de campeonato eu ainda não tinha certeza de coisa alguma.
Vocês sabem que engenheiros, como eu, que dependem da matemática para fazer seus trabalhos, acostumaram-se a apostar na certeza de dois algarismos significativos e, se absolutamente necessário, arriscar um terceiro.
Assim era que fazíamos cálculos até de grandes prédios (e quase nenhum caía...), confiando num pequeno dispositivo de plástico, sem chip, visor ou bateria - a famosa Régua de Cálculo.
A minha era aquela que ganhei de meu sogro, também engenheiro, uma nas quais se podia confiar em leitura segura de um terceiro dígito, tinha trinta centímetros e era feita com um tal bambu chinês que jamais encolhia ou espichava. Tudo ao contrário dos números que encolhem ou espicham nessa época de pandemia made in China.
Aliás, só de escrever "bambu", lembrei-me de que hoje não mais precisamos colocar o velho e bom acento agudo na letra “u”, caso contrário, para quem está se iniciando numa nova carreira de escritor, isso seria um erro grave.
Grave também seria confundir o COVID19 com a SRAG, a tal Síndrome Respiratória Aguda Grave. E para quem, como eu, também quer prosseguir no estudo da música, fazendo o que pode com seu piano, surge outro problema linguístico: será que alguma coisa pode ser aguda e grave ao mesmo tempo?
Bem, para quem estiver num ônibus lotado e sentir aquela dorzinha de barriga, e se a dorzinha evoluir para uma cólica intestinal aguda, essa pessoa estará definitivamente com um problema grave. Entretanto, no mundo dos sons a resposta é não, porque esses dois adjetivos são contraditórios: os graves se referem aos sons de frequência mais baixa, onde fica o popularmente chamado som “grosso”, ao contrário do som “fino” que está na região dos agudos.
Muita calma, querido leitor, essa miscelânea de assuntos abordados até este ponto está acontecendo tão somente para deixar claro os três seguintes fatos: primeiro, que estamos em uma pandemia, segundo que me graduei em engenharia, terceiro que sou músico amador e candidato a escritor, ok?
A bem da verdade, devo declarar também já ter vendido e instalado coifas de cozinha, montado sites na internet, consertado rádio vitrolas e TVs de tubo. Também já ensinei a muitos diretores e gerentes de empresas as técnicas de Gerenciamento Eficaz, isso sem dizer que eu quase virei psicoterapeuta - e ai de mim se não fosse o “quase”!
Fiquem tranquilos, pois essa enrolação acaba de acabar. Chegou a hora de dizer a vocês que a história vai começar em São Paulo, no Curso Anglo Latino, lá pelo final dos anos cinquenta, suprimindo aqui “do século passado” porque esse terrível e desnecessário complemento só me traz pensamentos funestos.
PARTE 2 - NO CURSINHO
Éramos mais de cem estudantes abarrotando a sala do genial professor Abram Bloch, no momento em que se juntou a nossa, uma outra turma que ia tentar vestibular em uma Faculdade de Arquitetura.Foi quando percebi à entrada da sala, um espécime humano do gênero feminino, ao mesmo tempo que, não sei se obra de Deus ou do outro lá de baixo, apareceu a meu lado uma carteira vazia. De dinheiro não! É que naquele tempo, não sei se hoje ainda, chamavam-se carteiras as cadeiras que acomodavam alunos com seus livros e cadernos nas salas de aulas (sim, presenciais, quase esqueço que agora é preciso especificar isso também!). Digo que surgiu foi uma carteira vaga a meu lado!
O fato é que os desígnios planetários naquele epicentro de intrépidos pretendentes a calouros de uma faculdade me fizeram sinalizar discretamente a tal carteira vaga àquela, cujo olhar perscrutava (bonita essa palavra, hein?) atentamente o tenso ambiente da sala de aulas com seu famoso professor à lousa (será que preciso explicar também o que era lousa?).
Vocês não fazem a menor ideia de como um gesto tão simples e inocente (peço perdão a quem se incomodou com esse último adjetivo) possa provocar consequências inimagináveis nas vidas de tantos outros espécimes humanos, vivos ou ainda por viver nesse curioso e inexplicável universo. Não teve jeito. Atenta e com a visão periférica da qual poucos desfrutam, ela viu! E ponto final - entendam aqui "final" com o significado exato de irredutível, derradeiro, definitivo.
Para um simples candidato a engenheiro, visto como um ser desagradável que pretende encarar um mundo hipercomplexo com irritante objetividade e selvagem pragmatismo, essa segunda parte do texto já deu o que tinha que dar.
Então que se prossiga essa... droga de história, ou, para ser mais sincero, “just tell us this fucking story!”
PARTE 3 - FLASHBACK
Agora me compreendam por favor, não é pelo prazer mórbido de criar suspense, mas para prosseguir esta história é preciso fazer um resumo do que foi minha vida até aquela fatídica aula do prof. Bloch.
Nasci em São Paulo, no bairro das Perdizes, primeiro filho do casal Olga e Guilherme, ele dentista ela farmacêutica, os quais se conheceram na USP, ainda plantada no bairro do Bom Retiro. De personalidade, digamos, rigorosa, ela, filha de italianos, já era assistente de um professor de microbiologia e acabou dando aulas práticas também para a turma da odontologia (já imaginaram a dureza da peça, né?).
Ele, mais novo um ano, depois que se casaram, brincava ao chamá-la de Mussolini, mas era só brincadeira, claro... Nada a ver com a vida real, pelo menos até o dia em que eu fui ver um psicoterapeuta e tive que dar conta de fazer um retrospecto daqueles que, bem, vocês sabem. O que? Não me venham dizer que nunca tiveram de bater um papinho com um desses - e nesse caso é bom irem pensando nisso.
Muito cedo fui matriculado no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Longe de ser como esses chinesinhos modernos que já nascem subindo em pau de sebo, aos seis anos tocava a Pour Elise na versão simplificada (mas ainda do velho Beethoven), e aos sete toquei o Hino Nacional na festa de fim de ano. Aos catorze concluí o curso, muito contra a vontade, porque o que eu queria mesmo era aprender a tocar jazz (como adorava aquelas harmonias diferentes do Stan Kenton), só não sabia como, nem onde, nem com quem.
Não me passava pela cabeça pedir apoio paterno, muito menos materno, para realização dessa heresia. Na verdade, e aqui muito entre nós, passava sim, e muito, pela minha cabeça, o que faltava era coragem para enfrentar o "Duce" (para quem não teve mãe italiana eu explico, é um título, tipo chefe, usado para se referir a ditadores como o citado ali atrás no apelido dela, e a pronúncia é Dútchi).
No saudoso e conceituado Instituto de Educação Caetano de Campos fiz primário e ginasial. O científico foi no Mackenzie, porque, acho eu, algumas amizades de classe social acima da nossa fizeram a cabeça dos velhos, já de olhos na faculdade.
Eu sempre pensei que ia fazer a Poli, mas acabei vestindo mesmo o blusão do Popeye, de certa forma isso foi muito bom, porque lá na Engenharia conheci figuras queridas do hoje carinhosamente chamado Mack62. Aliás, por obra da pandemia, alguns desses atuais anciãos costumam se encontrar em reuniões virtuais que acontecem em alguns dias úteis (?) da semana. Moderninhos, nós? Nada disso, pura culpa do Covid19.
Devo avisar aos jovens inquietos e futuros leitores que podem não saber muito bem o que foi a já tão falada pandemia que assolou o mundo neste meu atual 2020. Deter-me-ei sobre o assunto mais adiante, sem nenhuma vergonha dessa mesóclise.
Prosseguindo a história, devo dizer que eu queria mesmo era ir para o ITA, porque já adorava eletrônica, tinha feito um curso por correspondência de rádio e televisão, já tinha desmontado por completo e consertado (juro) nossa primeira TV, uma Invictus de 21 polegadas fabricada no Brasil porque o governo do militar Eurico Gaspar Dutra não gostava das importações.
Aproveito para lembrar que começou daí nosso atraso tecnológico, e que não paramos até hoje de ter de nos orgulhar tão somente com o faturamento recorde do agronegócio, além, é claro, do terrível lugar comum sobre as maravilhas do nosso país: o futebol, o carnaval e Cristo Redentor do Corcovado – e Ele que nos ajude!
Sobre a escolha do curso e da escola, digo que o ITA, para o meu amado odontólogo e amada farmacêutica, parecia estar em outro continente, não sendo possível sequer sonhar com uma permissão para frequentar uma faculdade no tão longínquo São José dos Campos!
Diante da impossibilidade do ITA, tive que me virar com as apostilas do Instituto Universal Brasileiro, aquele lá da rua Vitória (ou era Aurora?), e até faturar um bom dinheirinho quando, já na faculdade, montava na minha Vespa, levando a malinha de ferramentas com válvulas, resistores e capacitores, para atender clientes que não dispensavam o Repórter Esso na tela do indiozinho, a logomarca da velha TV Tupi de São Paulo.
Opa, atravessei o cronograma, nem sequer falei ainda do vestibular! O cursinho foi maravilhoso, eu, meu amigo Goloubeff, mais os colegas Juvenal, Berry e Henroz ficamos no top five do vestibular da Engenharia do Mackenzie naquele ano de 1958.
Optei pela área da engenharia civil (obrigatório) e elétrica (com uma torcida de narizes), depois de fazer aquele Anglo Latino com as aulas maravilhosas do professor Bloch, onde justamente aconteceu o episódio da carteira vazia e... bem, vocês já sabem disso.
PARTE 4 - ERA TUDO OU NADA
Mas não ficou por aí. Imagine que a donzela capturada naquela inacreditável cena da carteira vaga não demorou para que, nem bem soado o sinal de término da aula, me mandasse essa na lata: “Você sabe que fizemos o terceiro ano do primário na mesma sala”? Gelei.
Se de fato fosse, como poderia eu dizer que não me lembrava? E se fosse só uma artimanha para iniciar conversa, duvidar da veracidade da informação não seria um enorme risco? Afinal garotas nessa idade, mudam muito, o cabelo, o corpo, sei lá! Mas era minha vez de colocar as cartas na mesa.
Eu sabia, não sei porque, mas sabia que tinha que pensar e agir muito rápido. A sensação era de um tudo ou nada, como se a terra fosse parar de girar se eu vacilasse. Não era como uma questão de matemática no vestibular que se avizinhava, a coisa tinha dimensões cibernéticas, astrofísicas, quânticas, sei lá o que, mas tinha.
Tentando mostrar segurança, olhei firmemente naqueles olhos dos quais, qualquer que fosse o resultado daquele jogo, jamais deles me esqueceria. Franzindo o sobrolho e procurando parecer buscar na memória uma fisionomia antiga, disse, quase sussurrando, algo como:
- Você não é a... “
Ai valeu-me sorte, porque ela, também um pouco nervosa, foi quem vacilou, e soltou a carta:
- Sonia?
- Claro! Instantaneamente completei.
E ela fixou um olhar que me fez gelar de novo. Que mania a minha de responder depressa sem dar um tempinho para organizar meus apavorados neurônios! Será que foi um teste e ela se chama Maria Helena?
Mas não, logo veio um sorriso que me aqueceu de alto a baixo, até um pouco demais.
Ufa, passei nessa primeira prova, mas creiam, doravante as coisas não seriam tão fáceis assim.
O NAMORO
Sonia também fez o vestibular e entrou na Arquitetura do Mackenzie.
Nessa fase não tem muita novidade para contar, é o de sempre. O primeiro baile, que foi o da sua formatura no colegial, depois o primeiro cinema e depois o primeiro cinema (não errei não, o primeiro não valeu porque obrigaram-na a ir em companhia da irmã mais nova, coitada). Isso se chamava segurar vela. Assistimos um filme do qual jamais consegui me lembrar qual era.
Depois as primeiras caminhadas com mãozinhas juntas, o primeiro beijo (meeeu Deus!), namorar pelas praças nos loongos trajetos de ida ou de volta das aulas, e por aí vai.
PARTE 5- NOIVADO E CASAMENTO
Não me lembro se aconteceu algum ritual de noivado, só me recordo que um dia, jantando em casa dos pais dela, encarei o sogro. Muito sem jeito, disse a ele que queria deixar claro que estávamos namorando e que minhas intenções eram as melhores. Ao que ele, também meio sem jeito, brincou, como era de seu feitio, fazendo alguma piada da qual não me lembro. Acho que eu nem ouvi, ou nem entendi o humor da pilhéria, mas, pela reação da sogra e da cunhada presentes, não tive dúvida de que se tratava quase certamente da esperada permissão.
Na verdade, nunca entendi exatamente o que a expressão “melhores intenções” significava, mas no caso em tela, ou em tê-la, (de novo essa mania, mil perdões, leitor) significou e muito. E isso tem a ver com a Vespa, lembram dela? Sonia gostava do prático e econômico embora incômodo veículo, mas seu pai não suportava ver sua virtuosa filha na garupa de uma motoneta. Não tenho a menor lembrança do que eu disse naquele momento, só sei que uma cláusula pétrea naquele desajeitado contrato verbal acabara de ser flexibilizada – a liberação da garupa.
Até hoje não sei quais foram as tratativas de bastidor para que isso acontecesse de forma tão rápida e simples, nem nunca perguntei. Dei o caso por encerrado, curtindo silenciosamente a vitória.
Mas eu não posso omitir o fato de que, dias antes dessa conquista, houve um episódio curioso, e talvez tenha sido ele mais importante do que as supostas tratativas de bastidor. Um dos gêmeos, irmãos dela de cinco anos, teve um pequeno acidente em casa, nada grave, mas a mãe e as comadres presentes achavam que seria necessário visitar uma UBS, ou sei lá como se chamavam os pronto socorros da época, talvez pronto-socorro mesmo. E ainda, certamente, com hífen.
Naquele momento, no qual uma emergência se apresentava, qual foi o veículo que portentosamente se exibia em frente à casa? Hahá... claro, a Vespa. E não de outra forma o peralta (depois da era Faustão, se diz pentelho) foi levado ao pronto socorro, agora já sem hífen, não exatamente na garupa, mas à frente, no estribo, com seu galinho na cabeça.
Examinado e tratado, o geminho foi liberado e voltou para casa. Na Vespa, é claro. Ele, feliz com a aventura e por ter participado de um episódio, para ele inédito, que, ao final, trouxe o alívio e a felicidade geral da família e da vizinhança presente.
Para os que não viveram aquela época, devo dizer que o casamento ainda era um divisor de águas na vida dos noivos, e não só de águas, se é que me entendem. Pois bem, a pílula foi lançada nos Estados Unidos em 1960, só chegou à Alemanha um ano depois, portanto muito longe ainda de nossas farmácias de bairro ou mesmo das drogarias chiques do centro. Falando nelas, me lembro de duas: a Drogadada e a Ao Veado de Ouro.
O CASAMENTO
A cerimônia foi simplesmente burocrática no civil. O religioso foi na Igreja dos dominicanos, no alto das Perdizes, no dia 10 de outubro. A festa que era para ser simples, só com presença dos familiares e alguns amigos, acabou se complicando um pouco.
Meu pai era deputado estadual pelo antigo Partido Democrata Cristão, numa época convulsionada depois da renúncia de Jânio Quadros (1961). João Goulart, um vice de esquerda, foi quem assumiu o poder. O resultado foi a famosa “redentora” de 64, quando o novo presidente foi destituído e todos os partidos foram calados.
Por força de sua posição, mesmo sem o poder que o cargo lhe conferia, o velho acabou trazendo muito mais gente para a comemoração do que o esperado pela minha mãe, a organizadora do evento. Não preciso falar da saia justa que tiveram de vestir esses dois protagonistas do episódio.
Nós, os noivos, procuramos ficar fora disso, estávamos numa fase de dúvidas políticas, de discussão de valores sociais, econômicos e religiosos. Acabáramos de nos formar no Mackenzie, que vivia ainda o ambiente de uma longa e bem-sucedida greve, afinal havíamos posto para fora da Escola de Engenharia dez professores totalmente ineptos, lá colocados por nepotismo de reitor e omissão da entidade chamada mantenedora.
A lua de mel foi uma semana em Águas de Lindoia, num hotel que tinha uma vista maravilhosa da janela do quarto - nunca a esqueceremos. Marcelo nasceu no dia dez de julho, exatos nove meses depois do dez de outubro. A alegria de ter um filho maravilhoso foi enorme, e a cereja do bolo foi a incrível precisão da data. Sim, espertinhos, ninguém marcou data, foi parto normal, viram?
O SOGRO
Tenho de confessar que a figura daquele que, agora formalmente, veio a se tornar meu sogro, sempre me fascinou. Ele era uma dessas pessoas que perdem um emprego ou um amigo, mas jamais uma piada.
Além de criar ou trazer de suas leituras expressões do tipo “mais sujo que guardanapo de tropeiro”, era mestre em dar apelidos definitivos, como Biafra (para um parente magro de dar dó) e Bujão de Gás (para um cliente baixinho, troncudo e malcheiroso). Bordões tinha muitos, um para cada situação - quando dava um presente ou comentava sobre um presente dado ou recebido dizia, “Coisa fina...” e nunca se sabia se isso era um elogio ou uma ironia.
PARTE 06 - A CARREIRA PROFISSIONAL
PRIMEIRO ATO
Comecei numa empresa que parecia ter tudo aquilo que eu amava e queria, sinalização ferroviária era basicamente um sistema elétrico, eletromagnético, eletrônico e eletromecânico de controle de trens. Além disso o país precisava urgentemente de mais e melhores ferrovias e era o que deveria acontecer. Melhor impossível. Mas, a médio prazo, o pior possível: as ferrovias brasileiras começaram a ser sucateadas.
O contrato que a CBS (Cia Brasileira de Sinalização) tinha com o cliente prosperava, apesar dos problemas que enfrentamos. Logo de início, o material japonês enviado pelo consórcio vencedor da concorrência para sinalização da Estrada de Ferro Sorocabana (Barra Funda-Ourinhos), especificamente os relés de operação e segurança, apresentaram falhas logo nos primeiros testes, o que nos obrigou montar um laboratório para os ajustes que não haviam sido concluídos durante sua fabricação, alegando-se “para não perder prazos”.
Para mim, como funcionário da empresa, foi maravilhoso, apanhei e aprendi muito com isso e, em termos de crescimento profissional, só tive benefícios.
No ano seguinte, nosso amigo Otávio Lopes Filho, que estava enveredando pelo campo das obras públicas de construção civil, conseguiu vencer uma primeira concorrência para construção de pontes em estradas de rodagem no estado de São Paulo. Bem, já que as ferrovias começavam a parar, em decorrência do forte lobby dos pneus, vamos fazer pontes nas rodovias, porque não?
Convidado, animado, pulei decidido para esse novo barco, o qual, dias após, começou a fazer água, mais que isso, não conseguiu sequer se desgarrar do porto porque, com o já citado e famoso evento de abril de 64, o novo governador interino do estado de São Paulo decretou o cancelamento total dos contratos - e por muita sorte ainda nem tínhamos comprado o cimento!
Com a maravilhosa exceção do nascimento do Sérgio, o ano de 65 não podia ser pior. A pilha dos antigos “Picaretas”, o jornal do centro acadêmico, crítico aos fardados que dominavam o país, estava guardado no sótão e nós decidimos queimá-la por medo de uma investigação política. E nossa agenda de obras ia de mal a pior. O melhor que conseguimos, graças ao suporte de meu irmão Geraldo, foi a construção de um galpão industrial para a primeira fábrica de cerveja em latas do país: a Skol de Rio Claro.
Do ponto de vista financeiro foram sete anos de horrores, até um dia em que, do nada, toca um telefone e uma nova luz surge no horizonte, na forma de uma nova estrada, com aqueles dois longos, sólidos e conhecidos trilhos do saudoso mundo dos trens.
Espere um pouco, dirão vocês leitores atentos, então as ferrovias não estão sendo sucateadas? Não na Cia. Vale do Rio Doce, que tinha, na eficiência de seus enormes trens, a principal ferramenta para exportação do minério de ferro, item fundamental para assegurar importantes valores a nosso PIB.
SEGUNDO ATO
Quem disser qualquer coisa sobre esses segundos sete anos, tanto de vida pessoal como profissional, que não seja algo como maravilhoso ou perfeito, estará mentido. Chegar, eu e meus dois novos sócios, numa cidade onde se come a melhor muqueca de badejo do mundo, morar na praia, não na rua da praia, na praia mesmo, fazer o que ama, aprender muito mais, criar filhos em ambiente totalmente saudável e descontraído, montar e liderar uma equipe técnica da mais alta competência, emitir mensalmente faturas de valores até então impensáveis, aqui não tem como evitar o surrado “não tem preço”.
Só para dar um exemplo, somente um dos itens de nosso cronograma da montagem do sistema integrado de trafego ferroviário com controle automático de trens (isso sem contar o gerenciamento das obras de duplicação da linha férrea do Porto de Tubarão a Itabira, que veio de lambuja), era o lançamento subterrâneo de um complexo cabo de comunicações nos quinhentos quilômetros de via, passando por rios, vales, túneis, rochas e alagados. Um grandioso abacaxi que os primeiros vencedores da concorrência não conseguiram descascar e que nós, três malucos que assinaram o novo contrato, encaramos numa boa.
Na segunda parte desse maravilhoso período, já morávamos no Rio de Janeiro, mas naquele Rio cantado por Vinicius, “de onde se via da janela, o Corcovado, o Redentor, que lindo”.
Tantas coisas boas ocorreram nesses sete anos que diversas delas serão objeto de crônicas que pretendo logo escrever neste blog.
TERCEIRO ATO
Acho que eu não merecia continuar morando no paraíso e por alguma razão o chefão lá de cima achou que eu estava abusando e me obrigou a voltar para o purgatório. Mudamos de volta para sampa, filhos adolescentes, terapia e total mudança de profissão. Fui meio psicólogo, mesmo sem ter feito Psicologia, meio consultor de RH, mesmo sem ter frequentado sequer um cursinho de Administração.
Nesse período quem brilhou foi Sonia que, como arquiteta, continuava parte do tempo na prancheta e parte nas obras, eu com receitas minguadas de meio-profissional e ela gerenciando orçamentos nada econômicos de obras nos pujantes condomínios do Alphaville.
Disse "prancheta", mas isso só valeu no início do período, porque assim que o computador lhe chegou às mãos, a prancheta foi para o lixo e seu progresso foi imenso quando mergulhou no CAD (Computer Aided Design) ainda em suas primeiras versões, coisa que pouquíssimos profissionais de sua geração fizeram.
Mas eu também não posso me queixar dos contatos que tive com CEOs de destaque da época e de ter podido ajudar alguns deles prosperar no mundo dos negócios com meus seminários sobre motivação, liderança, administração de conflitos e temas afins.
Na virada do milênio publiquei o livro “Acorde para o Sucesso” fruto da experiência em meus trabalhos de consultoria e do conhecimento que ainda guardava dos estudos de piano lá na infância. Sobre esse tema vivi ótimos momentos nos trabalhos que realizei junto com meus dois filhos, os quais se dedicaram ao mundo da música. Marcelo é doutor pela Unicamp e Sérgio, mestre em composição e regência pela Patterson University, EUA, faleceu em 2015, vencido por um câncer cerebral.
Antes disso, com falecimento de meus pais e de minha sogra, tivemos acesso a alguns bens que tornaram possível construir novos imóveis comerciais e garantir uma aposentadoria mais ou menos tranquila.
PARTE 07- MUDANÇA DE HÁBITO
Ao contrário do que acontece no belo filme das irmãs cantoras, “hábito” aqui não se refere a um tipo de vestimenta, mas, figurativamente, a uma estilo de vida, num ambiente novo, longe da poluição e do trânsito, uma mudança do urbano para o rural.
Aquele retorno ao purgatório talvez tenha sido injusto, mas quem sou eu para discutir com o chefão. Mesmo porque, talvez, mercê daquele último estágio na dureza, tenha eu finalmente merecido um prêmio. E a mudança, dessa vez, chegou através de uma criatura da espécie canina. Explico.
Minha filha, dos três a mais nova, deu-nos uma cadelinha poodle. Aliás quando ela for ler esse texto (refiro-me a minha filha, é claro), não sei se chegará a esse ponto porque eu já falei de meus outros dois filhos em tópicos anteriores e, se ela ainda estiver por aqui, deve estar verde de ciúmes.
Calma Sizus, você vai ganhar mais espaço do que eles. Silvia é uma super professora de Pilates. Na verdade, ela “A” professora dos professores de Pilates, com especialização na Espanha, presença em congressos internacionais, atua aqui no país e em Portugal, compõe a cúpula daqueles que decidem o rumo do Pilates no Brasil. Nesse momento de pandemia faz tudo isso de forma virtual, com as lives, o zoom e outros recursos tecnológicos em alta depois da invasão do Covid19.
Voltando à cadelinha (agora sim, me refiro à poodle), fato é que morávamos em apartamento e eu, que adoro cachorros, não me conformava em vê-los vivendo em espaços fechados. Sempre fiz questão de ter lugares abertos para seu total desfrute (seu não, leitor, dos cães, é claro! Que língua complicada essa nossa!).
Posto isso, enviei à família uma medida provisória no sentido de que deveríamos nos mudar para um sitio, estabelecendo os termos de referência para a aquisição de um novo local de moradia - para nós e para a poodle. Sonia acrescentou alguns itens no documento, o que tornou a procura um pouco mais penosa.
No início do ano 2000, após revirar municípios num raio de até 150 km da capital (um dos itens dos termos de referência), achamos o lugar perfeito e, acreditem, bem mais palatável, economicamente falando, do que todos os outros pesquisados. Com malabarismo financeiro e impecável gerenciamento de caixa, adquirimos o sitio, que, em homenagem ao mecanismo de pesquisa virtual disponível antes do reinado do Google, chamamos de Altavista.
Sonia fazia questão de atribuir ao local a categoria de “Rancho” porque, por experiência em sua família de origem, não gostava de “Sitio”. Mesmo sem apresentar todas as características de um verdadeiro rancho, o lugar foi adotado com o longo nome de “Rancho Altavista Tudo Junto”.
Pensamos assim para que nossos cadastros no Sindicato Rural, na Vida Agropecuária, na Secretaria de Cultura, no cabeleireiro Ticena (quase ia me esquecendo desse) e outros CNPJs do município de Extrema, MG, aparecessem distorcidos como Rancho Alta Vista. Não sei porque as pessoas têm um hábito quase atávico de separar o “Alta” do “Vista”, e o Word, que não tem senso de humor, continua me aborrecendo com seus algorítmicos grifos azuis e tremelicados. Então desistimos e ficou só RANCHO ALTAVISTA mesmo, que acabou sendo conhecido pelo apelido de RAV.
É daqui do Rancho Altavista, ou RAV para os íntimos, aliás já bem conhecido daqueles velhotes do Mack62, que vos escrevo essas linhas, correndo risco de ser, com toda a razão, criticado pelo uso incorreto do pronome na segunda do plural.
PARTE 8 - A APOSENTADORIA
Se vocês pensam que eu vesti o pijama e passei a viver com a grana que o governo arrancou de minhas receitas brutas, liquefazendo-as para me devolver do jeito dele, não foi o que aconteceu.
Nunca acreditei nessas poupanças feitas pelos outros em meu nome. Aliás minto, uma vez eu caí nessa esparrela. Recolhi não sei quanto, durante não sei quanto tempo, para o Montepio da Família Militar e o recolhido ficou assim mesmo, recolhido até hoje, não sei quanto nem com quem ficou a grana que não era pouca! Foi a vingança dos fardados, aqueles que eu tanto critiquei lá atrás no Picareta, e que hoje em dia, politicamente, até entendo e valorizo sua postura.
Também não foi com venda de vacas, cabritos, queijos, frutas ou verduras que garantimos nossa receita, porque sítios foram feitos só para dar despesa, acreditem.
Não posso fechar esse tópico sem contar que, ano passado, eu e Sonia fomos ao INSS para conhecer seu novo prédio aqui em Extrema e, graças a essa curiosidade profissional, descobrimos que tínhamos, sim, direito a benefícios relativos a “aposentadoria por idade”, coisa que tinha sido negada em nossas últimas buscas. Então, desde janeiro deste 2020 começamos a receber mensalmente um dinheirinho e ficamos muito felizes, não tanto pelo valor, mas pela novidade.
A MÚSICA
O grande Tom Jobim, compositor do qual sou fan incondicional, gostava de um trocadilho e sempre o usava em entrevistas que dava para as rádios e Tvs. Dizia ele, “meu problema é de piano”, falando junto o “edipiano”. Mãe poderosa, cuidava mas exigia, vocês já podem imaginar.
Meu problema também sempre foi de piano, desde os cinco anos, já falei lá atrás. Ocorre que a partir dos quarenta e cinco recomecei a tocar, até comprei um teclado cheio de botões. Tocava muito mal para o meu gosto, mas não me preocupava com isso.
Quando mudamos em definitivo para o sítio, digo Rancho, eu já com setenta, fiquei mais exigente comigo mesmo. Convenci o Antonio Barker, ótimo pianista do grupo de música dos meus filhos, a vir uma vez por mês a me dar uma aula longa. Melhorei a postura no instrumento, a manutenção dos ritmos do jazz, da bossa nova, aprendi a ler as cifras e outras manhas para fazer arranjos mais interessantes e executá-los melhor. Até comprei um Yamaha, piano digital, mais simples e muito melhor em termos de sonoridade.
Aqui em Extrema a prefeitura estimula os artistas e eu passei a fazer parte do coral, acompanhar vocalistas e acabei formando uma dupla Piano e Voz com uma excelente cantora. Adriana e eu temos participado da programação artística da cidade, que, agora, com a pandemia, está produzindo “lives” ao vivo (com perdão do pleonasmo) e também “lives” gravadas (com perdão da inconsistência). Esse é o projeto@extremadendicasa, e nosso prefeito João Batista e sua ótima equipe não param de trabalhar.
Bora reelege-los pessoal!
FIM DA HISTÓRIA
Como prometi, na ocasião oportuna vou descrever o que foi a pandemia de 2020 em uma postagem especial. Pretendo também escrever e postar nesse blog crônicas sobre episódios interessantes ou curiosos que vivenciei durante essa minha jornada.
Até mais.