DOUCE FRANCE
Só depois de longos quinze anos, pela primeira vez na minha
vida como gente grande, tirei férias. E pela primeira vez deixamos os pentelhos
com os avós e fomos passear na Europa. Tinha de ser em alto estilo, né?
Meu empregador não brincava em serviço e não perdia viagem,
principalmente quando se tratava de viagem dos outros. Arranjou-me uma encrenca
para “quando você estiver em Paris, talvez possa dar uma passadinha...” Não sei
se passadinha é menor do que passada, nem sei se passada é menos do que
“deslocar-se de seu roteiro e ir a um local que fica só a trinta e cinco
quilômetros da Torre Eiffel”. Mas, seja lá o que for, tudo por um Brasil
melhor!
O local era sede do fabricante de um aparelho de ultrassom
projetado para inspecionar o concreto nas fundações dos viadutos em construção
na Via Norte, hoje Rodovia dos Bandeirantes. Esse aparelho deu pau e caiu nas minhas mãos
porque alguém me dedurou como o cara que consertava televisão. Disse que o melhor seria fazer contato com o fabricante, dai a "sugestão" para a tal passadinha.
Lá fui eu conhecer o francês que projetou a geringonça,
ainda de tecnologia analógica e com componentes especiais, isto é, ainda não
validados pela prática corrente, o que sempre é um problema porque não há peças
no mercado para reposição.
O francês, não lembro seu nome, com jeito muito simples, um tanto tímido, quase mudo quando não se tratava de assuntos de sua
especialidade, revelou-se na hora do almoço como alguém cioso do papel de
legítimo francês, defendendo sua terra natal naquilo que ele considerava uma de
suas mais preciosas conquistas ao longo de sua história e de sua cultura.
Vocês, leitores espertos, já sabem do que estou falando.
Não... não foi da vitória final da Guerra dos Cem Anos. Foi de algo muito mais
importante, falo da obtenção do melhor Bourgogne, do mais fino Beaujolais ou
mais intenso Bordeaux.
Vocês não vão acreditar, mas naquela mesa do refeitório onde
me levaram para o que eu imaginava ser um simples almoço, o acanhado francês
virou um leão. Fez voltar pelo menos meia dúzia de vinhos servidos e não
aprovados por suas sensíveis e experientes papilas gustativas. Afinal, meio a contragosto, aceitou
uma garrafa, nem sei do que era, e me serviu.
Ainda surpreso com aquela inesperada intervenção, o melhor
que pude fazer foi experimentar o primeiro gole, fingir avaliar por alguns segundos
que me pareceram séculos, pois todos os convivas me olhavam sem piedade,
aguardando alguma manifestação. Era como se o Louvre estivesse a ponto de ser
invadido pelo Estado Islâmico.
Vocês não imaginam meu sofrimento, minha dúvida na busca
desesperada de alguma atitude para sair daquele apavorante silêncio francês.
Cheguei a pensar que aquilo fosse uma brincadeira que o Maurinho (meu chefe) ou
o Maurílio (um parceiro na direção da filial de São Paulo) tinham programado
com seus amigos parisienses. Mas não, tudo indicava que de Napoleão a Macron, nada
existiu de mais sério.
E acabou meu tempo. Coloquei solenemente o copo na mesa, fiz a melhor cara de aprovação e aguardei o resultado. Olha, se o Paris Saint Germain tivesse ganho a Champions League a manifestação da galera não teria sido mais efusiva.
Respirando mais aliviado, olhei bem para cada um dos que degustavam solenemente cada gole daquela bebida e saquei que, obviamente, o assunto da máquina de ultrassom não se harmonizava com os taninos daquele vinho. A partir de então a conversa ficou nas amenidades.
Encerrada a tal “passadinha” e voltando às proximidades da Torre Eiffel, como combinado, encontrei minha mulher e perguntei como tinha sido o seu dia, ao que ela toda feliz começou a me contar:
- Então, meu bem,
como estava só, decidi almoçar no hotel mesmo, mas antes passei num mercadinho
e comprei um croque monsieur, meia garrafa de vinho francês e ...
- Pode parar por aí, nem me fale em vinho francês!
Ela parou, olhou-me surpresa, mas antes que pudesse dizer algo, levantei os braços e exclamei a alto e bom som:
- Meu Deus, finalmente estamos em Paris!