quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

 O VOO DE DOMINGO AO MEIO-DIA

 

Eu acabara de me casar, tinha então 24 anos quando decidi participar de uma atividade extremamente importante, naquela época, que era o radioamadorismo.  Importante porque à ocasião ainda havia algumas Capitais no país que, em tempo chuvoso, não dispunham sequer de estradas para acesso a uma cidade com mais recursos, fosse necessária uma radiografia ou simplesmente a compra de um remédio. O que dizer então de cidades do Interior com muito menos possibilidades de atendimento e salvação de um doente ou um acidentado mais grave.

Assim foi o caso de uma menina mordida por um cão não vacinado e acometido, comprovadamente, da Raiva, uma zoonose que, sem tratamento urgente e adequado, quase sempre é fatal.  Residia essa criança em Toledo, interior do Paraná e foi numa sexta-feira de feriado nacional prolongado que esse episódio teve lugar.  

Foi o pai dessa menina, pessoa simples, mas de mente clara, lembrou-se de um conhecido que se dizia radioamador, e foi a ele que recorreu em urgente e humano desespero. 

Naquele fim de tarde eu estava em casa com minha mulher, grávida do nosso primeiro filho, e com meu receptor ligado, quando ouvi, em meio a forte ruído na faixa dos 40 metros, o clássico e insistente CQ-40...CQ-40...CQ-40. Não sei porque, mas aquela voz me soava mais como uma súplica do que de um simples passatempo naquele hobby que eu tanto apreciava.

Atendi, e apesar da dificuldade diante de uma propagação deficiente, própria daquele horário, percebi que a súplica não era só coisa de minha imaginação; ao contrário, falava ele da cidade de Toledo, oeste do Paraná, e clamava por ajuda. Perguntou se eu estava disposto a encarar uma tarefa complicada tendo em vista o mau tempo e a urgência que se fazia necessária.

Olhei para minha mulher que ouvia aquela conversa cifrada onde esposa é “cristal”, automóvel é “pé-de-borracha”, endereço é “QTH” e estar de acordo é “QSL”. Ela também mandou sua cifra através de mero aceno de cabeça que qualquer um entenderia como “SIM”. 

A partir daquele exato momento todos os pensamentos e ações se concentravam em uma única missão: salvar uma vida humana através da aplicação de uma necessária medicação até, no máximo, 48 horas após a infecção.

Eu só vim a saber muito depois que, a partir do momento em que o paciente tenha desenvolvido os sintomas da raiva, não há mais tratamento eficaz – a morte sobrevém inevitavelmente. Mas há vacinas que são altamente eficazes se administradas em tempo hábil.   

O que de início parecia quase impossível tornou-se mais viável com a informação que o colega de Toledo nos passou: aos domingos, cerca de meio-dia, pousava no pequeno aeroporto de Toledo uma aeronave da empresa SADIA (que se transformaria mais tarde em TRANSBRASIL) e que atendia ao transporte de carnes de frango e de suínos produzidas na cidade e redondezas.

Minha missão agora seria conseguir a tal vacina no Instituto Pasteur e colocá-la nas mãos do comandante daquele voo, que decolaria de Congonhas (São Paulo) às 7h. da manhã de domingo. 

Argumentos para desistir não faltavam, mas algo me impedia de abandonar aquele homem e assim pensando decidimos encarar a tarefa.  A realidade de encontrar alguém capaz de me fornecer um produto, num sábado de feriado prolongado, numa instituição que localizei na Avenida Paulista (obviamente fechada) não foi das mais esperançosas. Nenhuma farmácia ou outro varejo dispunha dessas vacinas.

Não será difícil a qualquer pessoa imaginar as artimanhas que, naquele ano de 1964, tivemos que inventar para achar um médico daquele Instituto, capaz de se deslocar de seu descanso, abrir o prédio, coletar a vacina, aceitar a falta dos dados necessários sobre o paciente e enfim, pôr em minhas mãos um pequeno pacote cujo valor minha mulher e eu sequer conseguíamos imaginar.   

O resto foi até mais simples apesar das formalidades burocráticas de um aeroporto e o fazer contato com a tripulação, pois não eram permitidos despachos naquela linha aérea. Mas, incrivelmente, nessas horas, a boa intenção parece conspirar para que se encontre alguém que demonstre algum senso de humanidade para nos ajudar.

Domingo ao meio-dia o comandante daquele voo pousou suavemente em Toledo e pôs nas mãos do meu desconhecido amigo e colega radioamador a vacina que iria salvar uma vida.

Dias depois, uma linda carta chegou a nossas mãos - era do pai daquela menina. Não era mais necessária, já estávamos absoluta e completamente pagos. 

 

(Este texto inclui sugestões e uma competente revisão de meu amigo Celso Cretella)